Processo n.º 840/23.2T8STR.E1
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Sumário:
1 – Em
princípio, os recursos ordinários visam o reexame de questões que hajam sido
submetidas à apreciação do tribunal a quo
e não o conhecimento de questões novas, ou seja, suscitadas pela primeira vez
perante o tribunal ad quem. Apenas
assim não será se se tratar de questões de conhecimento oficioso.
2 – A
invalidade decorrente da falta de especificação, no contrato de mediação
imobiliária, dos efeitos da estipulação do regime de exclusividade, quando este
for acordado, não constitui uma nulidade em sentido estrito, mas sim uma
nulidade atípica ou mista, uma vez que só é invocável pelo cliente. Logo, não é
de conhecimento oficioso.
3 – Se o
cliente arguir a invalidade referida em 2, pela primeira vez, em sede de
recurso, o seu conhecimento está vedado ao tribunal ad quem.
4 – A
estipulação do regime de exclusividade num contrato de mediação imobiliária é
compatível com a da possibilidade de oposição, por qualquer das partes, à
renovação automática do contrato no final de cada período de vigência.
5 – Deve
entender-se que existe uma relação de causalidade entre a actividade
desenvolvida pela empresa de mediação imobiliária e a celebração do contrato
visado pelo contrato de mediação imobiliária, numa situação em que: a) em
Setembro de 2017, a empresa de mediação angariou os interessados a quem o
imóvel foi vendido; b) em 22.09.2017, o cliente e os interessados angariados
celebraram o contrato-promessa de compra e venda, com intervenção da empresa de
mediação; c) posteriormente, os interessados informaram a empresa de mediação da
sua intenção de desistirem do negócio; d) em 13.12.2017, o cliente opôs-se à
renovação do contrato de mediação, que ocorreria em 31.12.2017; e) em
23.01.2018, o cliente vendeu o imóvel aos interessados angariados pela empresa
de mediação.
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Autora/recorrida:
- AAA – Sociedade de
Mediação Imobiliária, S.A..
Ré/recorrente:
- BBB – Construções, Lda..
Pedido:
- Condenação da ré a
pagar, à autora, a quantia de € 7.687,50, acrescida de juros legais, contados
da data da celebração do contrato definitivo até efectivo e integral pagamento.
Sentença
recorrida:
- Julgou a acção
totalmente procedente, condenando a ré a pagar, à autora, a quantia de €
11.522,83, acrescida de juros moratórios vincendos, contados diariamente sobre
o capital de € 7.687,50, à taxa supletiva legal aplicável aos créditos
emergentes de transações comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10
de Maio, a que alude o art. 102.º, § 5, do Código Comercial, desde a data da
sua prolação (06.12.2023) até efectivo e integral pagamento.
Conclusões do
recurso:
1 – Entre autora e ré foi
formalizado um escrito a que convencionaram chamar contrato de mediação
imobiliária.
2 – Qualquer contrato de
mediação imobiliária que não tenha por base o respeito estrito pela lei tem
como consequência a sua nulidade.
3 – Nesta matéria
superintende a Lei 15/2013, de 8 de Fevereiro.
4 – Concretamente, no seu
artigo 16.º, n.º 2, al. g), faz-se referência ao regime de exclusividade e à
obrigatoriedade da especificação dos efeitos que daquele decorrem para as
partes contratantes (empresa e cliente).
5 – O n.º 5 daquela lei a
que fizemos alusão determina a nulidade dos contratos que incumpram,
nomeadamente, com o disposto nos seus n.ºs 1, 2 e 4.
6 – Em nosso ver, neste
contrato que ora analisamos, há uma manifesta lacuna quanto à especificação dos
efeitos do contrato para ambos os celebrantes. Apenas à guisa de exemplo
reiteramos um dos que explanámos antes: Apenas da leitura da cláusula em
equação, ficaria o cliente a saber se poderia de forma espontânea e natural,
através da sua própria actividade, esforço, procurar, aceitar propostas e
contratar com um terceiro interessado no imóvel?
7 – Desta forma o cliente
fica manifestamente pouco elucidado do que, para si, representa assinar um
contrato com uma cláusula como aquela inserida. E concretamente quais as obrigações
que daí para si advirão?
8 – Pelos motivos já
enunciados, consideramos esta situação gravosa para o cliente, porquanto, ao
assinar semelhante contrato, não fica plenamente esclarecido das consequências
(efeitos) que para si, futuramente o poderão atingir e surpreender. E até dos
eventuais direitos que porventura terá, (ou devia ter), que lhe ficam completamente
obscurecidos.
9 – Por essa violação do
assinalado artigo 16.º, n.º 2, al. g), da Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, através
dessa cláusula: Consideramo-la nula, assim como o respectivo contrato onde consta.
(V.d o n.º 5 dessa Lei)
10 – Igualmente,
defendemos na esteira do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/10/2023
(in DGSI.pt), que atrás mencionámos, que para os efeitos do artigo 19.º, n.º 2,
da Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, incumbia à empresa mediadora aquilitar ab initio se os clientes que angariou
estavam em condições de efectuarem o negócio em perspectiva. E competia também
à empresa mediadora, aqui A., alegar e provar que tinha angariado um comprador
interessado e que este estava preparado, dispondo de meios financeiros que no
imediato o habilitassem a pagar o preço ou que pelo menos os tivesse no momento
da projectada celebração da compra e venda definitiva.
Nada disso foi feito pela autora.
11 – Pelo concluído em 10,
de igual forma entendemos por violados aqueles pressupostos indicados no alegado
artigo 19.º, n.º 2, da assinalada lei, muito concretamente o ónus da prova.
12 – Com a quebra do
vínculo contratual entre as partes (autora e ré), através da revogação unilateral
do contrato por parte dos compradores, e com a pouca informação existente no
clausulado no que tange os efeitos da suposta exclusividade, não parece
invulgar ou pouco normal o sentimento de desvinculação, que a ré sentiu no que
concerne às obrigações decorrentes do contrato.
13 – Em nossa opinião, no
seguimento da jurisprudência expendida pelo excelso S.T.J. no seu Acórdão
8373/19.5T8LSB.L1.51 de 17 de Junho de 2021, consideramos que o contrato em
apreciação apresenta uma formalização paradoxal e ilógica e que contende também
com a sua validade.
14 – Não compreendemos
como no mesmo texto se tenta harmonizar duas posições completamente
incompatíveis entre si. A cláusula 4.ª, onde figura a rígida exclusividade, e a
8.ª, onde se pode pôr termo àquela, através de simples declaração com carta registada
com a/r.
15 – Entendemos que a consequência
só pode ser aquela preconizada no douto acórdão perfilhado – a inutilização da
cláusula de exclusividade. Com todas as implicações práticas e jurídicas daí
resultantes. Nomeadamente o readquirir da liberdade de poder contratar com quem
ele bem entendesse.
16 – Finalizando tudo o
que alegámos nesta sede, consideramos que o contrato de mediação imobiliária
que integra estes autos deve ser considerado nulo, com todos os efeitos legais
daí resultantes, maxime os atinentes
aos artigos 286.º e 289.º do Código Civil.
17 – Aqui, falar-se-á da
remuneração e desde logo se conclui que houve por parte do tribunal a quo um erro de interpretação das
cláusulas que indicou como tendo utilizado no seu raciocínio. Isto constata-se
muito facilmente analisando toda a sequência lógica por nós elencada nas
alegações e particularmente se nos ativermos: No Ponto B (i) das “Questões a
Resolver”; No contrato em si, referência principal da douta sentença, aliás
nessa sede reproduzido; E mais concretamente na sua cláusula 5.ª, no quadrículo
que foi assinalado e no seu conteúdo; Ainda absolutamente determinante (para
além das contas muito simples), o referido pelo douto tribunal na página 12 da
sentença - “A remuneração devida à A. corresponde a 5% do preço sobre o qual o
negócio seria efectivamente concretizado, acrescido de IVA………….” “Seria paga
nas seguintes condições: 50% após o contrato – promessa e o remanescente de 50%
na celebração da escritura ou conclusão do negócio.” E a definitiva e decisiva
frase (Também na mesma página 12 da douta sentença): “É justamente esta última
tranche que a A. vem exigir nestes autos”. Na verdade corresponde ao tal
remanescente de 50% na celebração da escritura ou conclusão do negócio.
18 – Esta errónea
interpretação também tem influência directa na eventual quantia a pagar pela ré.
Conforme, demonstrámos, com aritmética simples, estamos a falar de € 3.843,75 e
nunca de € 7.687,50, conforme pedido e condenação!
19 – Os eventuais juros
moratórios também não poderão ser os decididos na douta sentença, pois trata-se
aqui de uma quantia diversa e muito inferior (50%).
20 – Finalmente, e por
tudo o já manifestado e expendido não nos resta outra opção que não seja
requerer a nulidade do contrato de mediação imobiliária em apreço, pelas
violações atrás melhor descritas da Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro.
21 – Assim, como requerer
de igual forma a nulidade da presente sentença por tudo o supra aduzido e pela
violação do artigo 615.º, n.º 1, als. c) e d), do CPC.
22 – Assinalámos a alínea
c) porque entendemos e fomos muito minuciosos nesse particular que
relativamente ao contrato de mediação imobiliária em causa nos autos, o douto tribunal
a quo deveria ter pelo menos
analisado as questões que em nossa opinião o tornam nulo e declarado a nulidade
caso assim o entendesse.
23 – Assinalámos a alínea
d) porque consideramos que a ré não admitiu, em momento algum, dever qualquer
quantia a título de remuneração em dívida à autora. Na decisão relevou
essencialmente o contrato supra mencionado e como as contas e verbas neste mencionadas
estão totalmente erradas, sendo fruto de uma incorrecta interpretação, quer
pela autora em primeira linha, quer posteriormente pelo douto tribunal a quo. Estas questões de interpretação
do clausulado, das inerentes responsabilidades daí decorrentes e das verbas a
liquidar teriam de ser apreciadas pelo douto Tribunal a quo.
Questões a
decidir:
1 – Admissibilidade da
arguição da invalidade do contrato de mediação;
2 – Compatibilidade entre
as cláusulas 4.ª e 8.ª do contrato de mediação;
3 – Pressupostos do
direito à remuneração;
4 – Montante da
remuneração;
5 – Nulidade da sentença
recorrida.
Factos
julgados provados pelo tribunal a quo:
1. A autora é uma
sociedade comercial anónima que se dedica à actividade de mediação imobiliária.
2. Por escrito datado de
30.03.2017, autora e ré celebraram entre si acordo intitulado «contrato de mediação imobiliária» com o
n.º 155/17, no qual a primeira se comprometeu perante a segunda a diligenciar
no sentido de conseguir interessado na compra, pelo preço de € 135.000,00, da
fracção autónoma, destinada a habitação, correspondente ao segundo andar
esquerdo do prédio sito na Rua (…), lote (…), freguesia de (…), concelho de (…),
descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) com o número (…) e inscrito
na matriz predial urbana sob o artigo (…) (doravante, abreviadamente, fracção
autónoma), de que a ré se declarou proprietária.
3. Em contrapartida, a ré
comprometeu-se a pagar à autora uma remuneração correspondente a 5% do preço
sobre o qual o negócio seria efetivamente concretizado, acrescida de IVA à taxa
legal em vigor, nas seguintes condições: 50% após o contrato-promessa e o
remanescente de 50% na celebração da escritura ou conclusão do negócio.
4. A autora comprometeu-se
ainda perante a ré a, na qualidade de mandatária sem representação, prestar os
serviços conducentes à obtenção da documentação necessária à concretização do negócio
supramencionado, considerando-se a respetiva remuneração incluída no montante
que antecede.
5. Autora e ré ajustaram
ainda entre si que vigoraria entre ambas o regime de exclusividade, termos em
que apenas a autora teria o direito a promover o negócio aludido em 2 durante o
prazo de vigência daquele acordo, comprometendo-se a ré a pagar à autora a
comissão acordada caso violasse o regime de exclusividade.
6. Ficou igualmente
estipulado que a remuneração referida em 3 seria devida se a autora conseguisse
interessado que concretizasse o negócio visado por aquele acordo, bem como se o
negócio não se concretizasse por causa imputável à ré.
7. O acordo
supramencionado foi celebrado pelo prazo de 9 meses, contados a partir de
30.03.2017, renovando-se automaticamente por iguais e sucessivos períodos de
tempo, caso não fosse denunciado por qualquer das partes contraentes através de
carta registada com aviso de recepção ou outro meio equivalente, com a
antecedência mínima de 10 dias em relação ao seu termo.
8. A cláusula quinta do
acordo vertido em 2 tinha o seguinte teor:
Cláusula 5.ª
(Remuneração)
1 – A remuneração será
devida se a Mediadora conseguir interessado que concretize o negócio visado
pelo presente contrato e também, nos casos em que o contrato tenha sido
celebrado em regime de exclusividade, o negócio não se concretize por causa
imputável ao cliente.
2 – O Segundo Contratante
obriga-se a pagar à Mediadora a título de remuneração:
A quantia de 5% calculada
sobre o preço pelo qual o negócio é efectivamente concretizado, acrescida de
IVA à taxa legal em vigor.
A quantia de 5% Euros
acrescida de IVA à taxa legal em vigor.
3 – O pagamento da
remuneração apenas será efectuado nas seguintes condições:
50% após a celebração do
contrato-promessa e o remanescente de 50% na celebração da escritura ou
conclusão do negócio.
(…)
9. A autora desenvolveu actividades
de promoção com vista à venda do imóvel identificado em 2 e, nessa sequência,
em Setembro de 2017, encontrou interessados no negócio, CCC e DDD, pelo preço
de € 125.000,00, que a ré aceitou.
10. Por escrito datado de
22.09.2017, a ré e CCC e DDD celebraram acordo entre si, intitulado «contrato promessa de compra e venda»,
tendo a primeira declarado prometer vender e os segundos declarado prometer
comprar, pelo preço de € 125.000,00, a fracção autónoma melhor identificada em
2, comprometendo-se ainda os segundos a notificar a ré, por qualquer meio ao dispor
e com 8 dias de antecedência, do local, data e hora da mesma, com um limite de
90 dias a contar da assinatura daquele acordo.
11. O acordo que antecede
foi concretizado com a intervenção da autora.
12. No acto de assinatura
deste acordo, CCC e DDD entregaram à ré o montante de € 2.500,00, a título de
reserva, que ficou à guarda da autora para ser devolvido no dia da escritura de
compra e venda.
13. Este último cheque
nunca chegou a ser descontado.
14. Após, CCC e DDD
informaram a autora da sua intenção de desistir no negócio.
15. A ré remeteu à autora,
que recebeu em 13.12.2017, carta registada com aviso de recepção datada de 11.12.2017,
a comunicar-lhe a sua intenção de fazer cessar o acordo descrito em 2 em
31.12.2017.
16. Por acordo escrito,
celebrado perante oficial público em 23.01.2018, intitulado «título de compra e venda com mútuo e
hipoteca», a ré declarou vender a CCC e DDD que, por sua vez, declararam
comprar, pelo preço de € 125.000,00, a fracção autónoma melhor identificada em
2.
17. Ficou ajustado entre
as referidas partes contraentes que este último preço seria pago nas seguintes
condições: € 113.900,00 e € 5.000,00 foram entregues à ré no acto de assinatura
daquele acordo, através de cheques sacados, respetivamente, sobre o Banco BPI,
S.A. e sobre a Caixa Económica Montepio Geral; o remanescente, no montante de €
6.100,00, seria pago em prestações mensais, no prazo máximo de 3 anos a contar
daquela data.
18. Apesar de ter sido a autora
a aproximar a ré e CCC e DDD com vista à venda do imóvel, o «título de compra e venda com mútuo e
hipoteca» vertido em 16 não inclui nenhuma informação sobre a intervenção
da autora no negócio.
19. Deste acordo constam
os seguintes dizeres, sob a epígrafe «I. ADVERTÊNCIA ÀS PARTES»: «De que o cliente de empresa de mediação
imobiliária que omita informação sobre a intervenção desta no negócio incorre na
pena aplicável ao crime de desobediência previsto no artigo 348.º do Código
Penal».
20. Por escrito datado de
29.01.2018, a ré e CCC e DDD celebraram entre si acordo intitulado «acordo extrajudicial de regularização de
dívida», no qual declararam que o valor em dívida do remanescente do preço
mencionado em 17 ascendia naquela data ao montante de € 5.600,00, montante este
que os segundos se confessaram devedores e se comprometeram a restituir à ré em
prestações mensais e sucessivas, no montante de € 155,56 cada uma, com início
em 01.02.2018, vencendo-se as demais até ao integral pagamento até ao dia oito
de cada mês.
21. A ré nunca informou a
autora da data marcada para a outorga do acordo descrito em 16, sendo que esta
apenas posteriormente tomou conhecimento de que de tal negócio havia sido concretizado.
22. Após, a autora,
através de advogada, remeteu à ré, que recebeu, carta datada de 23.10.2018 a solicitar-lhe
que procedesse ao pagamento da remuneração acima mencionada em 3, no valor de €
6.250,00, acrescida de IVA à taxa legal, no prazo de oito dias a contar daquela
carta.
23. A autora emitiu à ré factura
n.º FT 2023A1/97, de 06.01.2023, no valor de € 7.687,50 (€ 6.250,00 + IVA à
taxa de 23%), referente à remuneração aludida em 3.
Factos
julgados não provados pelo tribunal a quo:
A) Que CCC e DDD desistiram
do negócio, como referido supra em 14, em virtude não terem conseguido
financiamento bancário.
B) Que a ré remeteu à
autora a carta supramencionada em 15 por ter ficado desagradada com a frustração
do negócio com CCC e DDD, tendo decidido arrendar o imóvel a partir de Janeiro
de 2018.
C) Que, em 18.01.2018, CCC
e DDD contactaram o representante legal da ré, propondo a compra do imóvel
identificado em 2, nas condições de pagamento referidas em 17 e 20.
D) Que o representante
legal da ré apenas teve contacto com CCC e DDD no acto da assinatura dos
acordos descritos em 10 e 16.
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1 –
Admissibilidade da arguição da invalidade do contrato de mediação:
A recorrente
argui a invalidade do contrato de mediação com fundamento na falta de
especificação, no seu clausulado, dos efeitos decorrentes da estipulação do
regime da exclusividade. Fá-lo, porém, apenas em sede de recurso. No tribunal a quo, a recorrente não arguiu essa
invalidade. Daí que se coloque a questão da admissibilidade de tal arguição.
Resulta dos
artigos 627.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2, e 640.º do CPC que, em princípio, os
recursos ordinários visam o reexame de questões que hajam sido submetidas à
apreciação do tribunal a quo e não o
conhecimento de questões novas, ou seja, suscitadas pela primeira vez perante o
tribunal ad quem. «Os recursos são meios de obter a reforma de
sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de
julgamento. (…) pretende-se um novo exame da causa, por parte de órgão
jurisdicional hierarquicamente superior.»[1]
Apenas assim
não será se se tratar de questões de conhecimento oficioso. Todavia, não é esse
o caso da invalidade agora invocada pela recorrente.
O artigo 16.º,
n.º 2, al. g), do Regime Jurídico da Actividade de Mediação Imobiliária
(RJAMI), dispõe que deverá constar do contrato de mediação imobiliária a
referência ao regime de exclusividade, quando acordado, com especificação dos
efeitos que do mesmo decorrem, quer para a empresa, quer para o cliente. O n.º
7 do mesmo artigo estabelece que o incumprimento do disposto nos n.ºs 1, 2, 4 e
6 determina a nulidade do contrato, não podendo esta, contudo, ser invocada
pela empresa de mediação.
Se
estivéssemos perante uma nulidade propriamente dita, aplicar-se-ia o disposto
no artigo 286.º do CC. Esta norma estabelece que a nulidade é invocável, a todo
o tempo, por qualquer interessado, e pode ser declarada oficiosamente pelo
tribunal.
Porém, não
obstante a designação legal, a invalidade prevista no n.º 7 do artigo 16.º do
RJAMI não é uma nulidade em sentido estrito, mas sim uma nulidade atípica ou
mista, uma vez que só é invocável pelo cliente. Esta restrição em matéria de
legitimidade para a arguição da invalidade determina, logicamente, a
inadmissibilidade do seu conhecimento oficioso pelo tribunal. O interesse
especialmente protegido pela norma é o do cliente, não o da empresa de mediação
ou o interesse público. É esta a razão de ser daquela restrição.
Não se
tratando de uma questão de conhecimento oficioso e não tendo sido arguida
perante o tribunal a quo, não poderá
sê-lo apenas em sede de recurso da sentença por aquele proferida. Daí que o seu
conhecimento esteja vedado ao tribunal ad
quem.
2 –
Compatibilidade entre as cláusulas 4.ª e 8.ª do contrato de mediação:
A recorrente
considera que as cláusulas 4.ª e 8.ª do contrato de mediação são incompatíveis
entre si e que tal incompatibilidade gera a nulidade deste contrato ou, pelo
menos, a «inutilização da cláusula de
exclusividade». Segundo a recorrente, a «rígida
exclusividade», estipulada na cláusula 4.ª, é incompatível com a
possibilidade de pôr termo ao contrato «através
de simples declaração com carta registada com a/r», estipulada na cláusula
8.ª.
A tese da
recorrente baseia-se numa errada interpretação da cláusula 8.ª. Esta cláusula não
permite a denúncia do contrato a todo o tempo, como a recorrente afirma. O que
aí se estipulou foi um prazo de nove meses para a vigência do contrato,
renovável automaticamente por iguais e sucessivos períodos, a menos que qualquer
das partes o «denunciasse», através
de carta registada com aviso de recepção ou meio equivalente, com a
antecedência mínima de dez dias em relação ao seu termo. Não está em causa a
possibilidade de denúncia, no sentido rigoroso do termo, mas sim de oposição à
renovação do contrato no final de cada período de nove meses. Portanto, um dos
termos da alegada incompatibilidade não se verifica, pura e simplesmente. O
que, por si só, inutiliza o argumento em análise.
Notemos,
contudo, o seguinte. Nas suas alegações, a recorrente mostra-se empenhada em
atacar a cláusula de exclusividade, visando a declaração da sua invalidade.
Aparenta, assim, estar a interpretar mal a sentença recorrida. O fundamento da
sua condenação não foi o regime de exclusividade estipulado no contrato de
mediação, mas sim a conclusão, a que o tribunal a quo chegou (acertadamente, como veremos no ponto seguinte), de
que a actividade de mediação desenvolvida pela recorrida foi causal da
celebração do contrato de compra e venda entre os clientes por esta angariados
e a recorrente. Com ou sem a estipulação do regime de exclusividade, a
remuneração pretendida pela recorrida seria devida, nos termos do n.º 1 do
artigo 19.º do RJAMI.
3 –
Pressupostos do direito à remuneração:
A recorrente argumenta
que a recorrida não cumpriu o ónus de alegar e provar que angariou um
interessado na compra do imóvel que para tanto estivesse preparado, isto é, que
dispusesse de meios financeiros que o habilitassem a pagar o preço. Considera a
recorrente que, por essa razão e atento o disposto no n.º 2 do artigo 19.º do
RJAMI, a recorrida não tem direito à remuneração que pretende.
Além desta, a
recorrente aponta uma outra razão para negar tal remuneração à recorrida: a partir
do momento em que o contrato cessou, ficou desvinculada das obrigações que
deste decorriam, mormente a de pagar a remuneração estipulada, tanto mais que a
recorrida não teve qualquer papel activo na celebração do contrato de compra e
venda.
A recorrente
não tem razão.
A recorrida
alegou e provou ter angariado os interessados a quem a recorrente vendeu o
imóvel. Não há, pois, fundamento para a recorrente afirmar que a recorrida não
cumpriu o ónus de alegar e provar que angariou um interessado na compra do
imóvel que para tanto estivesse preparado, isto é, que dispusesse de meios
financeiros que o habilitassem a pagar o preço. Essa angariação foi feita e,
tanto assim foi, que a recorrente acabou por vender o imóvel aos interessados
que a recorrida encontrou. Atente-se na seguinte sequência: Em Setembro de 2017,
a recorrida angariou os interessados a quem o imóvel foi vendido; em 22.09.2017,
a recorrente e os interessados angariados celebraram o contrato-promessa de
compra e venda, com intervenção da recorrida; posteriormente, os interessados informaram
a recorrida da sua intenção de desistirem do negócio (note-se que não se provou
que o fizeram por não terem conseguido financiamento bancário); em 13.12.2017,
a recorrida recebeu uma carta da recorrente em que esta lhe comunicava a sua
intenção de fazer cessar o contrato de mediação em 31.12.2017; em 23.01.2018, a
recorrente vendeu o imóvel aos interessados angariados pela recorrida.
Perante isto,
não há lugar para qualquer dúvida razoável sobre a existência de um nexo de
causalidade entre a actividade de angariação desenvolvida pela recorrida, em
cumprimento das obrigações que para si decorriam do contrato de mediação, e a
celebração do contrato de compra e venda do imóvel. A venda foi efectuada aos
interessados que a recorrida encontrou e deu a conhecer à recorrente. A
proximidade temporal entre os acontecimentos acima descritos inculca, por um
lado, que os clientes angariados se encontravam em condições de comprar o
imóvel e apenas declararam, à recorrida, que desistiam de o fazer para, em
seguida, celebrarem esse negócio à revelia desta; e inculca, por outro lado,
que isso aconteceu em conluio com a recorrente, que se opôs à renovação do
contrato de mediação para, dias depois, vender o imóvel a essas mesmas pessoas
sem pagar a remuneração devida pelo trabalho desenvolvido pela recorrida.
Ao contrário
do que a recorrente afirma, a recorrida não se limitou a intervir «numa determinada fase incipiente dos
factos». A recorrida levou a cabo a actividade a que se obrigou no contrato
de mediação e fê-lo com sucesso, pois encontrou os interessados que acabaram
por comprar o imóvel.
Concluindo, a
recorrente encontra-se obrigada a pagar, à recorrida, a remuneração prevista no
contrato de mediação, nos termos do n.º 1 do artigo 19.º do RJAMI.
4 –
Montante da remuneração:
Na sentença
recorrida, referiu-se que a quantia em cujo pagamento a recorrida pretende que
a recorrente seja condenada corresponde aos 50% da remuneração acordada que
seria devida aquando da celebração do contrato de compra e venda.
É evidente o
lapso cometido pelo tribunal a quo. A
recorrida pediu a condenação da recorrente a pagar-lhe a totalidade da
remuneração estipulada no contrato de mediação, correspondente a 5% do valor do
preço pelo qual o imóvel fosse vendido, acrescido do valor do IVA, perfazendo €
7.687,50. Pediu ainda a condenação da recorrente a pagar-lhe juros à taxa legal,
contados da data da celebração do contrato de compra e venda. O tribunal a quo condenou, acertadamente, a
recorrente no pagamento da totalidade dessa quantia, mas referiu, por lapso, que
a mesma correspondia a 50% da remuneração acordada.
Posteriormente,
o tribunal a quo corrigiu esse lapso,
esclarecendo que a condenação se reportava à totalidade da remuneração. Daí que
toda a argumentação que a recorrente desenvolve com base nesse lapso,
condensada nas conclusões 17.ª a 19.ª, tenha perdido actualidade. Não há dúvida
de que o valor em cujo pagamento a recorrente foi condenada corresponde à
totalidade da remuneração a que a recorrida tem direito e que foi esse o valor
peticionado. Carece, pois, de fundamento a redução do montante da condenação referida
nas conclusões 18.ª e 19.ª.
5 –
Nulidade da sentença recorrida:
A recorrente
sustenta que a sentença recorrida padece das nulidades previstas nas als. c) e
d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Verificar-se-ia a nulidade prevista na al.
c) porquanto o tribunal a quo «deveria
ter pelo menos analisado as questões que em nossa opinião o tornam (ao
contrato de mediação imobiliária) nulo e
declarado a nulidade caso assim o entendesse». Verificar-se-ia a nulidade
prevista na al. d) porquanto o tribunal a
quo, embora não condenando em quantia superior à peticionada, acabou, fruto
de uma errónea interpretação e de cálculos errados, por condenar a recorrente
em muito mais do que aquilo que eventualmente será devido.
Parece-nos que
a recorrente cometeu um lapso na indicação das referidas alíneas. Atenta a
forma como descreve as nulidades que argui, concluímos que tem em vista a
omissão de pronúncia e a condenação em quantidade superior ao pedido, previstas,
respectivamente, nas als. d) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
A recorrente
não tem razão.
A sentença
recorrida não é nula por omissão de pronúncia porquanto o tribunal a quo apreciou o único fundamento de
nulidade do contrato de mediação que a recorrente arguiu na contestação,
julgando-o improcedente. As supostas nulidades desse contrato que a recorrente
argui em sede de recurso não são de conhecimento oficioso, pelo que o tribunal a quo não podia conhecê-las.
Por outro
lado, a própria recorrente reconhece que a sentença recorrida não a condenou em
quantidade superior ao pedido. Ainda que o tivesse condenado «em muito mais do que lhe será eventualmente
devido pagar» (o que, como vimos, não aconteceu), a sentença não padeceria
daquela nulidade.
*
Dispositivo:
Delibera-se,
pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença
recorrida.
Custas a cargo
da recorrente.
Notifique.
*
Évora,
06.06.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.º adjunto)
[1] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume
V (reimpressão), p. 212.