sábado, 22 de junho de 2019

Acórdão da Relação de Évora de 30.05.2019

Processo n.º 1041/14.6TBPTM-C.E1

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Sumário:

1 – A sociedade comercial estrangeira que viole o disposto no n.º 1 do artigo 4.º do Código das Sociedades Comerciais mantém a personalidade jurídica que lhe seja atribuída pela sua lei pessoal, pelo que tem personalidade e capacidade judiciárias.

2 – Os embargos de executado não constituem meio processual idóneo para obter a condenação da sociedade comercial estrangeira que viole o disposto no n.º 1 do artigo 4.º do Código das Sociedades Comerciais a cessar a sua actividade em Portugal e a liquidação do património da mesma sociedade aqui situado, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.

3 – A capacidade da sociedade comercial não é limitada pelo seu objecto social.

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Em embargos de executado deduzidos por G. – Promoção Imobiliária, Lda., contra H. Lux, SARL, a embargante interpôs recurso de apelação do despacho saneador, formulando as seguintes conclusões:

A) Sem prejuízo da apelante ter interposto recurso do despacho saneador na parte em que julgou a determinação das custas a cargo da executada e a aplicação de sanção processual de taxa sancionatória excepcional, o que foi feito tempestivamente em recurso próprio, o presente recurso é apresentado por existirem fundadas reservas relativamente à (falta de) fundamentação do tribunal na decisão sobre a que julgou improcedentes as excepções invocadas, sendo que tais questões também poderiam ter sido analisadas pela discussão oral desta questão na audiência prévia, entretanto dispensada, conforme 2.º § do despacho saneador. O presente recurso é, assim, também, apresentado como forma de acautelar os direitos do apelante face a uma decisão cuja motivação não se afigura clara.

B) Importa recordar que a apelante não é devedora de qualquer crédito à apelada, ou aos anteriores cedentes do crédito hipotecário, sendo antes apenas um interveniente enganado pela complexa teia de sistemas de créditos bancários à construção.

C) De facto, apelada exequente e primitivos cedentes do crédito hipotecário só têm contra a ora apelante, executada nos autos, um crédito hipotecário, cujas hipotecas foram enganosamente registadas e não distratadas com a cumplicidade de construtora e banco e ardilosamente cedido entre participadas do banco e compradoras de ativos tóxicos em Portugal, sem que alguma vez a executada, ou mesmo o devedor original, o tenha consentido.

D) Perante a flagrante injustiça, a apelante fez uso do direito que lhe assiste o artigo 731.º do CPC, utilizando, além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729.º, na parte em que sejam aplicáveis, quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração.

E) Foi no uso deste direito que a apelante invocou nos seus embargos de executado diversos fundamentos de oposição, a saber:

i) A falta de personalidade, ou de capacidade judiciária da exequente para figurar na presente lide;

ii) A falta de prova do mandato da exequente, ou insuficiência ou irregularidade do mesmo;

iii) A inexistência de título executivo quanto à executada;

iv) A nulidade do contrato de cessão de créditos entre o Banco, S.A., à C., S.A., por inexistência de citação do devedor e falta de habilitação da exequente;

v) A ilegalidade do registo predial no registo do contrato de cessão de créditos entre o Banco, S.A. à C., S.A., mormente nos termos da alínea c) do art.º 16 do Código de Registo Predial;

vi) A existência de litispendência dos presentes autos com a ação que se encontra a correr termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Portimão, processo n.º 1015/11.9BPTM;

vii) A nulidade da cessão de créditos operada entre o banco e a C., S.A., por ser contrário à lei o negócio celebrado, quer porque o seu objecto social não o permite, quer por falta de resolução do negócio, quer ainda por falta de citação do devedor principal;

viii) A nulidade da cessão de créditos operada entre a exequente e a C., S.A.;

ix) A redução da hipoteca;

x) A condenação do Banco, S.A. em litigância de má-fé, enriquecimento sem causa e extinção da hipoteca;

xi) O benefício de excussão prévia do património da devedora principal, suspendendo-se os presentes autos quando à executada;

xii) E posterior aos embargos, no requerimento de folhas 461 a 465, o conhecimento oficioso da nulidade da cessão de crédito por força do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2016, publicado em Diário da Republica na 1.ª série, n.º 4, de 7 de Janeiro de 2016, alegando, em síntese, que a cessão de crédito é interdita por lei a instituições que não sejam instituições de crédito.

F) Sobre a falta de personalidade, ou de capacidade judiciária, o tribunal a quo não põe em causa o direito da executada, mas considera que esse pedido não é compatível com a função destinada ao apenso declarativo de oposição mediante embargos de executado.

G) Não assiste razão ao tribunal a quo na medida em que, como é admitido pelas partes, a executada não é a devedora originária, nem parte na relação material da obrigação exequenda, pelo que só foi confrontada com a questão na execução, sendo obrigada a opor-se em sede de embargos.

H) A executada, antes da execução, não conhecia, nem tinha qualquer interesse directo, ou legitimidade processual, que justificasse demandar a exequente numa acção a pedir a cessação da atividade da exequente e liquidação do seu património.

I) A exequente não juntou qualquer certidão comercial, mas apenas um número de identificação de pessoa colectiva não residente para efectuar em Portugal um acto isolado, apesar da própria cessão de créditos ser há mais de um ano e de centenas de activos e milhões de euros e portanto, objetivamente, não um acto isolado.

J) Assim, a executada, na sua defesa, para além dos meios de defesa próprios dos embargos, solicitou e bem a intervenção do Ministério Público (a quem cabe a legitimação activa para a acção do artigo 4.º, n.º 3, do CSC) para a verificação do incumprimento de obrigações fiscais da exequente, assim como para ordenar a cessação e liquidação do património à luz do artigo 4.º do Código das Sociedades Comerciais o que, a confirmar-se, obrigará à nulidade do processo, excepção dilatória não suprível, de conhecimento oficioso, vide alínea b) do art.º 577 CPC.

K) Por outro lado, a questão é matéria de enormíssima relevância de interesse público que cabe especialmente ao ministério público e que ultrapassa a presente execução. Nas palavras do Prof. Dr. Pedro Leitão Pais de Vasconcellos, “os interesses protegidos pelo art. 4.º são aqueles para os quais o seu regime jurídico apresenta utilidade para atingir o fim do sujeito que interesse ao direito proteger. Estes fins são de duas ordens: por um lado, o regime do art. 4.º do CSC é útil proteger o comércio em geral: a concorrência, o mercado, o lucro, a troca, por exemplo. … A par destes interesses, verificam-se interesses colectivos, como sucede com a protecção de direitos de personalidade e dados pessoais relativamente a sociedades que emitam dívida ao público (por exemplo, papel comercial) …. Nestes casos, face à dispersão dos interesses pela coletividade, é fundamental a protecção por parte do Ministério Público. O mesmo regime é também útil para proteger os “interesses individuais homogéneos”, que consistem no reflexo particular de alguns fins protegidos pelo art.º 4.º CSC. O interesse de um concorrente na lealdade da concorrência, ou na estabilidade do mercado. Para além destes interesses que são gerais, o art.º 4.º CSC é útil para a protecção de fins específicos de determinados sujeitos. Ao obrigar à instituição de uma representação permanente e ao respeito pelas regras de registo, o art.º 4.º é útil para informações sobre a sociedade comercial estrangeira que permite accioná-la judicialmente, por exemplo, ou que permite enviar-lhe uma qualquer declaração negocial. Também estes interesses particulares são relevantes para o art.º 4.º n.º 3 do CSC, porquanto sem este regime o art.º 4.º, n.º 1 deixa de apresentar uma tutela para as pessoas que ele pretende proteger.”

L) No caso concreto, sendo a cessão de créditos que subjaz a execução uma operação com um valor de aquisição de créditos hipotecários de € 15.400.000,00 (quinze milhões e quatrocentos mil euros), correspondente a centenas de créditos hipotecários, uma decisão do Ministério Público no sentido da verificação da situação, não só trará uma eventual concreta e relevante contingência fiscal de incumprimento de obrigações fiscais da exequente, mas pode levantar o véu sobre a duvidosa legalidade do mercado de transmissão dos activos tóxicos das instituições financeiras em Portugal a operadores não registados.

M) Por outro lado, não podemos concordar com a posição restritiva e simplista que defende o tribunal a quo quando afirma que a sociedade com sede no estrangeiro não se encontra obrigada às disposições nacionais no que respeita ao registo da sua constituição e capacidade para praticar actos vinculativos, senão vejamos:

N) Sem prejuízo da douta troca de opiniões entre autor do artigo 4.º do CSC e críticos (Prof. Dr. António Caeiro e Prof. Dr. Moura Ramos), a única obra doutrinária específica particularmente recente sobre o artigo 4.º do CSC é da autoria do Prof. Dr. Pedro Leitão Pais de Vasconcelos.

O) Refere o citado professor na obra citada, folhas 52 e 53, “No caso das sociedades comerciais portuguesas constituídas em Portugal, a falta de registo importa a falta de personalidade jurídica. No caso das sociedades comerciais portuguesas constituídas noutro estado (e admitindo que tenham adquirido personalidade jurídica de acordo com a lei desse estado) estas podem manter a sua personalidade jurídica (art.º 3.º n.º 2), desde que procedam ao registo do contrato junto do registo comercial português. O art.º 3.º n.º 3 do CSC determina que o regime do art.º 3.º n.º 2 do CSC apenas atinge os seus efeitos com o registo do contrato. Assim, quer a sociedade comercial portuguesa tenha sido constituída em Portugal ou noutro estado, a falta de registo implica a falta de personalidade jurídica. Em consequência, todas as sociedades comerciais portuguesas estão obrigadas a proceder ao registo do contrato, sob pena de falta de personalidade jurídica. Na prática, a consequência aplicada é a da inactividade da sociedade comercial enquanto tal… Uma sociedade comercial portuguesa que pretenda exercer a actividade durante 1 (um) ano sem proceder ao registo, não o pode fazer, porquanto não beneficia de personalidade jurídica. Como tal as sociedades comerciais portuguesas não podem exercer atividade enquanto pessoas coletivas sem procederem ao registo. Por sua vez, as sociedades comerciais estrangeiras podem exercer a actividade em Portugal por 1 (um) ano sem estabelecer em Portugal uma representação permanente e cumprirem as regras de registo comercial. Como tal, durante um ano, estão em vantagem sobre as sociedades comerciais portuguesas… Como se pode concluir, durante o primeiro ano de actividade as sociedades comerciais estrangeiras estão em vantagem face às suas congéneres portuguesas. Mas, passado um ano, ou logo que decidam exercer atividade por mais de 1 (um) ano, as sociedades comerciais estrangeiras deixam de ter essa vantagem, e passam a ter de estabelecer em Portugal uma representação permanente e cumprirem as regras de registo comercial, tal como sucede com as sociedades comerciais portuguesas.”

P) As conclusões da obra doutrinária citada não deixam qualquer dúvida, que, objectivamente, estando uma sociedade comercial estrangeira, como é o caso da exequente, a exercer a sua atividade em Portugal há mais de 1 (um) ano, está obrigada a proceder ao registo comercial, ou a instituir uma representação permanente, sob pena de falta de personalidade jurídica e consequentemente, falta de personalidade judiciária.

Q) Está, pois, errada e ferida de nulidade a decisão do tribunal a quo quando considerou improcedente por não provada a excepção dilatória de falta de personalidade e de capacidade judiciárias da sociedade exequente e quando julgou verificada a excepção dilatória inominada de inadmissibilidade do pedido de cessação de actividade da sociedade de acordo com o artigo 4.º do Código das Sociedades Comerciais, absolvendo a exequente da instância.

R) Ficaram ainda erradamente prejudicados os pedidos de junção da certidão comercial, de solicitação de intervenção do Ministério Público, de citação dos administradores da exequente bem como das pessoas que praticaram actos de eventuais omissões de registo comercial e fiscal.

S) Deve ser antes decidido nos termos solicitados nos embargos, solicitando-se a intervenção do ministério público no sentido de verificar concretamente a actividade irregular e ilegal da exequente.

T) Sobre a falta de prova do mandato da exequente, ou insuficiência ou irregularidade do mesmo.

U) Refere o tribunal a quo, no despacho saneador, que “a existência e validade do mandato conferido à sociedade F. – Consultoria e Gestão de Créditos S.A. foi objecto de despacho constante de fls. 286, no qual se indeferiu a extinção dos autos por falta de representação válida.”.

V) O referido despacho não junta a procuração cujo prazo de validade se encontra ultrapassado, nem mesmo a cota registada no citius posterior ao despacho junta a referida procuração, pelo que a executada mantem válida a alegação de que o mandato não está regularizado, ao contrário do que refere o referido despacho de folhas 286.

W) Por último, mostra-se infundada a decisão do tribunal a quo no despacho saneador quando refere que “a existência e validade do mandato conferido à sociedade F. – Consultoria e Gestão de Créditos S.A. foi objecto de despacho constante de fls. 286”, porquanto no referido despacho de fls. 286, o tribunal adiou “sine die” a decisão quando afirmou “A extinção da instância por falta de regularização do mandato é prematura.”

X) Entende, pois, a executada que a decisão do tribunal a quo está ferida de nulidade, quer porque está em oposição com a prévia decisão que entendeu prematura a extinção da instância por falta de regularização do mandato, assim como a decisão do despacho saneador contem um vício claro de fundamentação, pois não permite à executada pronunciar-se sobre a procuração que nunca lhe foi notificada.

Y) Sobre a nulidade do contrato de cessão de créditos entre o Banco, S.A. à C., S.A. (por inexistência de citação do devedor e falta de habilitação da exequente) e ao contrário do que entendeu o tribunal a quo, a apelante não confunde a necessidade de notificar o devedor, com a sua própria qualidade de terceira parte aos contratos de cessão e contrato de mútuo pois, desde a data da sua escritura de compra das fracções com hipoteca, que “discute” e “luta judicialmente” pelo distrate das mesmas.

Z) Tanto assim é que é o próprio tribunal a quo que enuncia como temas de prova para a audiência de discussão e julgamento dúvidas sobre a existência da dívida e em que termos, pronunciando-se favoravelmente pelo chamamento do empregado bancário responsável.

AA) Conclui a executada que, face aos argumentos estribados e à factualidade descrita, deveria o tribunal a quo ter em especial atenção que a cedência do crédito deveria ter o especial consentimento do devedor por ser um crédito bancário, por a lei e a convenção das partes assim o determinar numa relação bancária, a que acresce que o crédito estava pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor banco.

BB) E, acessoriamente, conforme já explicado, a exequente, ora apelada, terá que se habilitar no processo, situação esta que obriga à prévia regularização do registo comercial.

CC) Nesse sentido, a preocupação visada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2016, referente ao recurso de uniformização de jurisprudência 2475/10.0YXLSB.L1.S1-A tem especial fundamento neste caso, pois a exequente, sucessiva cessionária dos créditos cedidos, não se encontra registada em Portugal, limitando de facto e de direito a responsabilidade sobre a imputação de danos.

DD) Sobre a ilegalidade do registo predial no registo do contrato de cessão de créditos entre o Banco, S.A. à C., S.A., o tribunal a quo não põe em causa o direito da executada pedir a anulação da inscrição no registo predial nos moldes em que é solicitada, apenas considerando que constitui um pedido próprio de uma acção declarativa constitutiva.

EE) Entende a apelante que a decisão judicial que ordene a cessação da actividade e liquidação do seu património da apelada terá como consequência a extinção dos direitos hipotecários que esta goza, porque serão liquidados e, concomitantemente, os registos hipotecários em nome da exequente serão cancelados com base na extinção do registo da cessão de créditos nos termos da alínea c) do citado art.º 16 CRP.

FF) Sobre a nulidade da cessão de créditos operada entre o Banco, S.A. e a C., S.A., por ser contrário à lei o negócio celebrado, o tribunal a quo entendeu erradamente que “…verifica-se, assim, a falta de legitimidade da embargante em arguir a limitação da capacidade da sociedade C., S.A. que determina a manifesta improcedência da excepção de invocada de nulidade por violação do disposto no artigo 6.º, n.º 4 do CSC.”… e sobre a resolução do negócio julgou que “…é manifestamente despiciendo arguir a falta de interpelação quando a executada que refere à saciedade a existência de outro processo no qual se demandou a devedor acabou por ser citada em termos que permitiram conhecer que o exequente - à data, Banco P., S.A. – exigia-lhe o pagamento dos montantes em dívida tendo, por operada, de forma tácita, a condição resolutiva do contrato através da sua citação.”

GG) Conclui a apelante que além das razões pelas quais entende que tem legitimidade para suscitar a nulidade da cessão de créditos, acrescem outras novas razões.

HH) No processo em tudo análogo ao presente, em que são partes a ora exequente e os familiares do sócio gerente da ora apelante, que corre os seus termos na mesma Comarca (Faro, Silves – Inst. Central – 2.ª Secção de Execução – J1, Processo n.º 1040/14.8TBPTM-A), a exequente afirma que foi oportunamente e devidamente comunicado aos devedores a cessão operada, tendo os executados arguido que não é verdade porquanto as moradas utilizadas não são as dos contratos e, mesmo a admitir novas moradas, o que se concede por dever profissional, os endereços utilizados tem todos os códigos postais errados, concluindo que se está perante um caso de total e absoluta incompetência, ou de má-fé, cabendo ao exequente o ónus da prova do oposto.

II) Sobre o benefício de excussão prévia entende a apelante a decisão do tribunal a quo é prematura porquanto, quando decide que ao não existir a penhora de outros bens não onerados com a garantia real para satisfação do crédito detido pela exequente, a executada não pode reclamar o reconhecimento da insuficiência dos bens dados em garantia, o julgamento pode provar o oposto, ou seja: que existiu penhora de outros bens onerados com garantia real para satisfação do crédito detido pelo banco, os quais não foram cedidos parcialmente à ora exequente, apelada, omitindo o banco que tais bens primeiramente penhorados permitem à ora executada e apelante reclamar o reconhecimento da suficiência dos bens dados em garantia à dividia originária.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deve ser concedido provimento ao presente recurso, julgando-se o mesmo procedente e revogando-se o despacho saneador no que respeita à parte em que julgou improcedentes as excepções invocadas, substituindo-se por outra nos termos melhor solicitados em sede de embargos.

A recorrida ofereceu contra-alegações, com as seguintes conclusões:

A) O tribunal a quo julgou, e bem, improcedentes as excepções apresentadas pela aqui recorrente.

B) Para o efeito, o tribunal a quo considerou que são improcedentes as excepções de falta de personalidade judiciária, da insuficiência do título, da nulidade de cessão de créditos entre o Banco P., S.A. e a C., S.A. e da cessão de créditos entre a C., S.A. e a ora recorrida, da nulidade decorrente da violação do sigilo bancário, da nulidade de notificação da cessão para efeitos do artigo 583º, n.º 1, do Código Civil à devedora MX, Lda. e a invocação do benefício de excussão.

C) O tribunal a quo considerou ainda improcedente a falta de resolução do contrato de mútuo, a extinção dos autos por falta de representação válida e julgou não verificada a excepção dilatória de litispendência.

D) Por fim, absolveu a exequente da instância quanto aos pedidos de nulidade do registo e de redução da hipoteca, e indeferiu por inepto o pedido de condenação do Banco P., S.A..

E) De tal forma que foram fixados e bem, o objecto do litígio e os temas da prova.

F) O BC, S.A. celebrou com a MX, Lda. um contrato de mútuo com hipoteca celebrado por escritura pública em 29.07.2003, outorgada por VB, Notário do Cartório Notarial de (...), inscrita no Livro 367-B, de fls. 10 a fls. 13.

G) Nos termos do contrato supra identificado, o BC, S.A. concedeu à MX, Lda. um empréstimo no valor de € 2.000.000,00, para financiamento à construção de imóveis destinados à habitação.

H) Esta escritura de mútuo com hipoteca consubstancia um documento exarado por notário que importa a constituição e reconhecimento de obrigações, nos termos do disposto o artigo 703.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.

I) Como garantia do pagamento de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir pela MX, Lda., até ao valor de capital de € 2.000.000,00, no valor máximo assegurado de € 2.699.800,00, provenientes de todas e quaisquer operações bancárias, bem como dos respectivos juros remuneratórios acordados e das despesas havidas - que se computaram para efeitos de registo em € 80.000,00 - foi constituída uma hipoteca, a favor do BC, S.A., sobre os seguintes imóveis:

a) Prédio urbano constituído por lote de terreno para construção, designado por lote cinco, sito (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 15251 do livro B - 39 (actual descrição 3298 da freguesia de …), inscrito na respectiva matriz sob o artigo 2732 (actual 5709);

b) Prédio urbano constituído por lote de terreno para construção, designado por lote quarenta e cinco, sito em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 3645, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 5566.

J) O prédio referido na alínea a) foi constituído em propriedade horizontal e dividido em várias fracções, entre as quais as seguintes: “T”, “Z”, “AC”, “AF”, “AL”, e “AM”.

K) Sucede que estes imóveis encontram-se actualmente registados a favor da ora recorrente na Conservatória do Registo Predial de (…), pela Ap. 16 de 2006/09/22.

L) E não obstante ter sido concretizada a transmissão de propriedade, os imóveis dados como garantia continuam onerados com a supra mencionada inscrição hipotecária, nos exactos termos em que a mesma foi constituída a favor do BC, S.A., a qual se transmite com a transmissão de propriedade.

M) Sendo de ressalvar desde já que a recorrida não renunciou àquelas garantias, nem, tão pouco, foi ressarcida da totalidade da dívida.

N) Pelo que, os imóveis continuam a garantir o crédito que goza de garantia real por força do direito de sequela plasmado nos artigos 721.º e 818.º do CC.

O) E, apesar de a recorrente ser terceira perante a relação obrigacional, não o é face à execução, circunstância essa que impôs que a acção executiva tenha sido movida contra esta, de modo a permitir a penhora dos bens com vista ao ressarcimento do crédito exequendo.

P) A hipoteca reveste a natureza de um direito real de garantia, na medida em que apresenta as notas características dos direitos reais, como p.e. o direito de sequela, segundo o qual, e como refere MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, 441, “ (…) o seu titular poder acompanhar a coisa, independentemente de quaisquer vicissitudes, onde quer que ela se encontre (…)”.

Q) Pelo que tal significa que o credor hipotecário poderá ver solvido o seu crédito, por força do bem hipotecado, onde e com quem quer que este esteja, pois essa é, justamente, a função jurídico-social e económica da hipoteca, o que se infere, de resto, do n.º 1 do artigo 686º do Código Civil ao estatuir que: “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro (...)”.

R) Por outro lado, é forçoso concluir que a recorrida é parte legítima nos presentes autos.

S) Tendo procedido à sua habilitação ab initio, fundamentando a sua legitimidade e procedendo à junção da escritura de cessão de créditos, bem como do respectivo documento complementar.

T) Ora a recorrida fez junção aos autos de prova documental bastante, que comprova a sua legitimidade.

U) E com a propositura da acção executiva, a recorrente tomou conhecimento da cessão de créditos operada.

V) Tendo-se, em tal momento, por efectuada a notificação a que se refere o artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil.

W) Acresce que nos termos do disposto no artigo 356.º do Código Processo Civil, a habilitação de cessionário somente poderia ter sido contestada com fundamento na impugnação da validade do acto de cessão, ou no facto da transmissão ter sido feita para tornar a posição da recorrente mais difícil no processo.

X) E a recorrente em momento algum questiona a validade da cessão ou alega que a transmissão foi feita para tornar a sua posição mais difícil no processo.

Y) Por outro lado, cumpre esclarecer que a recorrida é uma sociedade de responsabilidade limitada, legalmente constituída, em conformidade e sobre as leis do Grão Ducado do Luxemburgo, com sede em (…) - Grão Ducado do Luxemburgo, e registada no Registo de Comércio e Sociedades do Luxemburgo, sob o n.º (…).

Z) Encontrando-se a sua actividade devidamente regularizada junto dos serviços nacionais, sendo portadora do número de identificação de entidade equiparada estrangeira (…) e encontrando-se devidamente autorizada para efeitos de aquisição de créditos hipotecários – cfr. cópia da certidão de identificação de entidade equiparada estrangeira junta como Doc. n.º 1 na contestação.

AA) Assim, a recorrida encontra-se devidamente representada, formal e materialmente, por F. – Consultoria e Gestão de Créditos SA, com sede em (…), matriculada na Conservatória do Registo Comercial de (…), com o número único de matrícula e de pessoa colectiva (…), no exercício do poder atribuído pela procuração outorgada, em 23 de Janeiro de 2013, no Cartório Notarial de Luxemburgo - Notário (…), devidamente apostilhada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros do Grão-Ducado do Luxemburgo em 24 de Janeiro de 2013 sob o nº (…), nas pessoas dos seus procuradores constituídos, com poderes suficientes para o acto, nos termos da Procuração outorgada em 1 de Abril de 2014, no Cartório Notarial sito em (…), na Rua (…) - Notário (…).

BB) Assim e ao contrário do que a recorrente pretende fazer crer, a sociedade ora recorrida tem personalidade e capacidade judiciária, e configura uma entidade apta a ser parte processual nos presentes autos.

CC) No que toca ao mandato, tal como foi já dito e devidamente comprovado, não existe qualquer insuficiência ou irregularidade do mesmo.

DD) No requerimento executivo, a recorrida figura como exequente e outorgou poderes à F. – Consultoria e Gestão de Créditos SA, através de procuração data de 23 de Janeiro de 2013, no Cartório Notarial de Luxemburgo – Notário (…), devidamente apostilhada e registada informaticamente no site www.procurações online.mj.pt.

EE) Deste modo, não existe qualquer falta de personalidade judiciária da ora recorrida, nem tão pouco existe fundamento para alegar insuficiência ou irregularidade do mandato.

FF) A recorrente questiona a validade das cessões de créditos operadas.

GG) E também aqui, carecem de qualquer fundamento os argumentos invocados pela recorrente.

HH) As sucessivas cessões de créditos foram efectuadas por escritura pública, que acompanharam o requerimento executivo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.

II) Tendo sido efectuados os competentes registos das cessões de créditos garantidos por hipoteca, junto da Conservatória do Registo Predial, em cumprimento do art. 2.º, n.º 1 al. h), 1.ª parte, do Código do Registo Predial.

JJ) Ainda nesta senda, traz a recorrida à colação o Decreto-lei n.º 298/92.

KK) No entanto, a recorrida na situação ora controvertida não concede nem pode conceder a aplicação deste diploma.

LL) É imprescindível esclarecer que a operação ora contestada em nada tem a ver com as operações bancárias praticadas em regime de exclusividade pelas Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras à luz do diploma supra citado.

MM) Neste sentido, veja-se as palavas do acórdão da Relação de Lisboa de 18.11.2008, disponível em www.dgsi.pt, quando refere que “(…) Ora, no nosso caso em concreto, como se referiu há uma venda de crédito, ou seja, estamos perante um contrato de compra e venda subjacente à cessão de crédito. Trata-se de uma operação comercial e não operação bancária, porquanto não reúne os requisitos que enumeramos para as operações bancárias, pelo que não é aplicável à presente cessão de créditos o regime do Decreto-lei n.º (DL n.º 298/1992, de 31.12) - (cfr. art.º 362.º do Código Comercial). (…)” Negrito e sublinhado nossos.

NN) Nem tão pouco a recorrida tem legitimidade para invocar nulidades nas cessões de créditos operadas.

OO) A recorrida assume a posição de terceira em todos estes negócios.

PP) E neste sentido, leia-se o entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.04.2008, disponível em www.dgsi.pt, quando menciona que “(…) Seja como for, são de excluir do círculo dos meios de defesa oponíveis pelo devedor, as circunstâncias que digam respeito à causa da cessão, pois que estas interessam apenas às relações entre cedente e cessionário. Nesta medida serão irrelevantes para o devedor os vícios do contrato de cessão. Tolera-se apenas que o devedor, sob pena de poder vir a satisfazer o crédito a dobrar, se inteire da real existência da cessão (…)”.

QQ) Mais, é completamente descabida a invocação do benefício da excussão prévia de bens pela ora recorrente.

RR) Nos termos do disposto no artigo 752.º do CPC, nas execuções de dívida com garantia real, a penhora inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução.

SS) E no caso ora controvertido não se encontra prevista a aplicação do regime do benefício da excussão prévia de bens.

TT) Por tudo quanto supra exposto, não se vislumbra a possibilidade de decisão diversa da que foi sabiamente defendida pelo tribunal a quo, porquanto se mostra devidamente fundamentada e juridicamente adequada à realidade constante dos autos.

UU) Na peça apresentada pela recorrente, vem a mesma arguir a ineptidão do requerimento executivo apresentado pela recorrida, por insuficiência do título executivo.

VV. Ora, a recorrida encontra-se em manifesto desacordo com os argumentos deduzidos pela recorrente.

WW) Dispõe o n.º 5 do artigo 10.º do CPC que “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”.

XX) Dessa forma, o título executivo constitui um “pressuposto de carácter formal da acção executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor” (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09-12-2010, processo n.º 1999/2001.L1-8, disponível in www.dgsi.pt).

YY) O título executivo assume a particularidade de demonstração legal bastante do direito a uma prestação, razão pela qual se impõe, em sede de acção executiva, a dispensa de qualquer indagação prévia sobre a existência ou subsistência do direito substantivo a que o mesmo se reporta (nesse sentido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-05-2003, processo n.º 02B3251, disponível in www.dgsi.pt).

ZZ) Invoca ainda a recorrente que “(…) a falta de resolução do contrato de mútuo em relação ao devedor MX, Lda. constitui uma excepção dilatória material que se reporta à declaração expressa ou tácita efectuada pelo credor que permite resolver o contrato se o devedor faltar culposamente ao cumprimento da obrigação que o vinculava (…)”.

AAA) Salvo o devido respeito, a recorrida não pode deixar de discordar da recorrente.

BBB) No âmbito do processo executivo n.º 1051/11.9TBPTM, que correu termos no Tribunal de Família e Menores da Comarca de Portimão, a sociedade MX, Lda. foi regularmente citada por meio de éditos na pessoa do seu legal representante.

CCC) E deste modo, e nos termos no disposto na alínea b) do n.º artigo 610.º do CPC “Quando a inexigibilidade derive da falta de interpelação ou do facto de não ter sido pedido o pagamento no domicílio do devedor, a dívida considera-se vencida desde a citação”.

DDD) Sendo então certo que após a citação, o contrato de mútuo que sustenta os presentes autos se encontra resolvido.

EEE) A sociedade MX, Lda., citada para se opor à execução, não o fez.

FFF. Tendo concluído não existir fundamento para apresentar uma oposição à execução com base na falta de citação.

GGG. Face a tudo quanto exposto, torna-se forçoso concluir que os fundamentos apresentados pela recorrente não têm qualquer base legal, pelo que deverão ser julgados totalmente improcedentes.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

*

As questões a resolver são as seguintes:

1 – Personalidade e capacidade judiciárias da recorrida;

2 – Admissibilidade da dedução, em sede de embargos de executado, de pedido de cessação da actividade da recorrida em Portugal e de liquidação do seu património que aqui se situe, com fundamento no disposto no n.º 3 do artigo 4.º do Código das Sociedades Comerciais;

3 – Regularidade, suficiência e prova do mandato forense da recorrida;

4 – Nulidade do contrato de cessão de créditos celebrado entre o Banco, S.A. e a C., S.A., por falta de citação e de consentimento do devedor, bem como de habilitação da recorrente;

5 – Legalidade do registo do contrato de cessão de créditos celebrado entre o Banco, S.A. e a C., S.A.;

6 – Nulidade do contrato de cessão de créditos celebrado entre o Banco, S.A. e a C., S.A. por não estar compreendido no objecto social da segunda;

7 – Nulidade do contrato de cessão de créditos celebrado entre a C., S.A. e a recorrida por falta de comunicação do mesmo aos devedores;

8 – Se a recorrente goza do benefício da excussão.

*

Conhecendo:

1.ª questão:

A recorrente sustenta que a recorrida, por ser uma sociedade comercial estrangeira, exercer actividade em Portugal há mais de 1 ano, não ter aqui instituído uma representação permanente e não cumprir o disposto na lei portuguesa sobre registo comercial, carece de personalidade jurídica e, consequentemente, de personalidade e de capacidade judiciárias. 

Vejamos se é assim.

A 1.ª parte do n.º 1 do artigo 3.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) estabelece que as sociedades comerciais têm como lei pessoal a lei do Estado onde se encontre situada a sede principal e efectiva da sua administração.

Resulta dos documentos anexos ao requerimento executivo e não suscita controvérsia entre as partes o facto de a recorrida ser uma sociedade comercial constituída ao abrigo da lei do Luxemburgo e ter a sua sede neste país, em cujo registo comercial se encontra matriculada. A sua lei pessoal é, pois, a do Luxemburgo.

O n.º 1 do artigo 4.º do CSC estabelece que a sociedade que não tenha a sede efectiva em Portugal, mas deseje exercer aqui a sua actividade por mais de um ano, deve instituir uma representação permanente e cumprir o disposto na lei portuguesa sobre registo comercial. 

Em 15.02.2013, através de um contrato de cessão de créditos celebrado em Portugal, a recorrida adquiriu, à sociedade denominada C., S.A., “um conjunto de créditos litigiosos, hipotecários e não hipotecários, em situação de incumprimento e cuja resolução já foi declarada, concedidos a vários mutuários, individualmente identificados no documento complementar” à escritura pública. Em 18.03.2014, a recorrida instaurou execução contra a recorrente. Isto basta para concluir que a recorrida desenvolve actividade em Portugal há mais de 1 ano.

Não dispomos de elementos que nos permitam concluir se a sociedade denominada F. – Consultoria e Gestão de Créditos, S.A., pode ser considerada uma representante permanente da recorrida em Portugal e se esta cumpre o disposto na lei portuguesa sobre registo comercial. Contudo, ainda que nenhuma dessas condições se verifique e que, em consequência, a recorrida esteja a violar o disposto no n.º 1 do artigo 4.º do CSC, a recorrente carece de razão.

As consequências da violação do n.º 1 do artigo 4.º do CSC são as estabelecidas nos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo. A sociedade estrangeira fica obrigada pelos actos praticados em seu nome em Portugal e com ela respondem solidariamente as pessoas que tenham praticado tais actos, bem como os gerentes ou administradores da mesma sociedade. Por outro lado, o tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público, ordenar que a sociedade cesse a sua actividade em Portugal e decretar a liquidação do seu património aqui situado. 

A tese da recorrente baseia-se numa interpretação errónea dos citados n.ºs 2 e 3 do artigo 4.º do CSC. Não resulta destas normas que a sociedade estrangeira que viole o n.º 1 deste artigo careça de personalidade jurídica e, consequentemente, de personalidade e de capacidade judiciárias. Mais, tal solução seria absurda.

Recordemos que, nos termos da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 3.º do CSC, as sociedades comerciais têm como lei pessoal a lei do Estado onde se encontre situada a sede principal e efectiva da sua administração. O mesmo é dizer que elas existem como tais por efeito da referida lei. Logo, se essa lei for estrangeira, seria um contrassenso os n.ºs 2 e 3 do artigo 4.º do CSC estabelecerem que a violação do n.º 1 tivesse como consequência a sociedade estrangeira não ter personalidade jurídica, perder a personalidade jurídica ou, sequer, ser tratada em Portugal, perante a nossa lei e pelos nossos tribunais, como se não tivesse personalidade jurídica.

Assim, a lei portuguesa não pode negar a personalidade jurídica a uma sociedade estrangeira que a possua por força da sua lei pessoal. Que a lei portuguesa não pode estabelecer que uma sociedade estrangeira não tem personalidade jurídica, negando-a ab initio ou estabelecendo a sua perda em determinadas condições, fora do seu âmbito de aplicação, constitui uma evidência. Uma tal norma interna estaria, logo à partida, votada à pura e simples ineficácia. A sociedade estrangeira não depende da lei portuguesa para existir.

Poderia, contudo, conceber-se que a lei portuguesa estabelecesse que a sociedade estrangeira, em determinadas condições (por exemplo, se violasse o n.º 1 do artigo 4.º do CSC), fosse tratada em Portugal, nomeadamente pelos nossos tribunais, como se não tivesse personalidade jurídica, negando-se-lhe, consequentemente, personalidade e capacidade judiciárias. Porém, uma tal solução estaria em contradição com o princípio básico estabelecido na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 3.º do CSC. Se a lei pessoal da sociedade estrangeira lhe atribui personalidade jurídica, a lei portuguesa reconhece-a como tal.

Mas há mais. Os próprios n.ºs 2 e 3 do artigo 4.º do CSC pressupõem que a sociedade estrangeira que viole o n.º 1 continue a ter personalidade jurídica.

Assim, sem personalidade jurídica, a sociedade estrangeira não poderia ser sujeito passivo das obrigações que o n.º 2 lhe atribui. E sem personalidade e capacidade judiciárias, não poderia ser demandada nos tribunais portugueses, com óbvio prejuízo, desde logo, para os seus credores. O infractor acabaria beneficiado.

Por outro lado, em conformidade com os limites que acima assinalámos ao âmbito de vigência da lei portuguesa, o n.º 3 apenas permite que o tribunal português ordene que a sociedade estrangeira cesse a sua actividade no nosso país e decrete a liquidação do seu património que aqui se situe. Não faria sentido um tribunal português ordenar a cessação de toda a actividade da sociedade estrangeira, ainda que desenvolvida fora de Portugal, e decretar a liquidação de todo o seu património. Como expressivamente afirma PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, na obra Sociedades Comerciais Estrangeiras – O art. 4.º do Código das Sociedades Comerciais, várias vezes citada pela recorrente, “de modo análogo ao que sucede com as pessoas que se encontrem clandestinamente em Portugal, que são expulsas do território, a sociedade comercial estrangeira que tenha uma actividade clandestina em Portugal também pode ver a sua actividade ser expulsa de Portugal” (p. 224). É apenas disto que se trata no n.º 3 do artigo 4.º do CSC, de “expulsar” de Portugal a sociedade estrangeira que não cumpra o disposto no n.º 1. Continuando a citar o mesmo autor e obra, “a acção incide sobre a actividade da sociedade e não sobre a sociedade em si, pois a decisão não extingue a sociedade, apenas a proíbe de ter actividade em Portugal; (…) “ a acção determina a liquidação do património da sociedade sito em Portugal, mas não dissolve a sociedade, nem determina a liquidação do restante património da sociedade, abrangendo a decisão parte limitada do património da sociedade e não sendo dirigida nem à pessoa colectiva, nem à totalidade da sua esfera patrimonial” (p. 227).

Além de que, para poder ser demandada e condenada nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do CSC, a sociedade comercial estrangeira tem de estar dotada de personalidade e de capacidade judiciárias. Recorrendo novamente à lição de PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, obra citada, página 262, “quando a sociedade comercial estrangeira não tem representante permanente em Portugal, a legitimidade é desta e só desta, que agirá em juízo directamente”; e “a sentença proferida, sendo a acção julgada procedente, condena a sociedade a cessar a sua actividade em Portugal e decreta a liquidação do seu património em Portugal” (p. 269). Ou seja, é a própria sociedade comercial estrangeira que infrinja o n.º 1 do artigo 4.º do CSC que é demandada e, sendo a acção julgada procedente, condenada, o que, obviamente, só será possível se tiver personalidade e capacidade judiciárias.

Concluindo, a sociedade estrangeira que viole o n.º 1 do artigo 4.º do CSC mantém a sua personalidade jurídica, mesmo na ordem jurídica interna. Consequentemente, inexiste fundamento para lhe negar personalidade e capacidade judiciárias.

2.ª questão:

Na petição de embargos, a recorrente requereu que o tribunal a quo ordenasse “a cessação e liquidação do património da exequente o que obrigará à nulidade do processo, excepção dilatória não suprível, de conhecimento oficioso, vide b) do art. 577 CPC”.

O tribunal a quo entendeu que “a cessação da actividade da exequente e a liquidação do património não são compatíveis com a função destinada ao apenso declarativo de oposição mediante embargos de executado” e, em conformidade, julgou “verificada a excepção dilatória inominada de inadmissibilidade do pedido de cessação de actividade da sociedade de acordo com o artigo 4.º do Código das Sociedades Comerciais”, absolvendo a recorrida da instância quanto ao mesmo.

Nas suas alegações de recurso, a recorrente sustenta que a incompatibilidade referida pelo tribunal a quo não se verifica, desenvolvendo a sua argumentação sobre essa matéria nas conclusões G) a L). Porém, tal argumentação passa completamente ao lado da questão da compatibilidade do pedido em causa com a finalidade legal dos embargos de executado. A circunstância de a recorrente, devido à posição que ocupa relativamente à dívida garantida pela hipoteca, só na execução ter sido confrontada com a questão da alegada violação do n.º 1 do artigo 4.º do CSC pela recorrida, seria relevante se estivesse em discussão uma questão de tempestividade, o que não é o caso. O interesse público na cessação da actividade da sociedade estrangeira em Portugal e na liquidação do seu património aqui situado, que é indiscutível, pode ser prosseguido através da propositura de uma acção judicial autónoma, contra aquela sociedade, por quem para o efeito tiver legitimidade, não exigindo, portanto, que os embargos de executado sejam utilizados para se obter tais efeitos jurídicos. Finalmente, uma decisão judicial no sentido referido no n.º 3 do artigo 4.º do CSC não determinaria a nulidade do processo executivo, tendo em conta aquilo que referimos a propósito da 1.ª questão.

A fundamentação expendida pela recorrente a propósito desta 2.ª questão é, pois, inócua. Não obstante, sempre diremos que concordamos com o tribunal a quo.

Os embargos de executado têm como finalidade permitir a este último opor-se a uma execução contra ele proposta e, por essa via, determinar a extinção desta última, no todo ou em parte, como resulta dos artigos 728.º, n.º 1, e 732.º, n.º 4, do CPC. Essa oposição pode ser feita, consoante a natureza do título executivo, com os fundamentos previstos nos artigos 729.º, 730.º e 731.º do mesmo código. Em qualquer caso, estamos perante um meio processual de defesa do executado face a uma acção que visa agredir o seu património com vista à cobrança efectiva de um crédito.

Sendo esta a finalidade dos embargos de executado, salta à vista que não são eles o meio processual próprio para se obter os efeitos jurídicos previstos no n.º 3 do artigo 4.º do CSC. Esse meio é uma acção declarativa comum, proposta pelo ministério público ou por qualquer interessado contra a sociedade comercial estrangeira que alegadamente esteja a infringir o disposto no n.º 1 do mesmo artigo, na qual seja pedida a cessação da actividade daquela sociedade em Portugal e a liquidação do seu património que aqui se situe. Veja-se, neste sentido, PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, obra citada, páginas 267-270.

3.ª questão:

Por despacho proferido em 25.11.2015, já transitado em julgado, o tribunal a quo considerou regularizado o mandato forense conferido pela recorrida e, em consequência, indeferiu o requerimento de extinção da instância formulado pela recorrente com fundamento em irregularidade do referido mandato. No despacho recorrido, o tribunal a quo limitou-se a referir que aquela questão tinha sido decidida por despacho anterior.

No presente recurso, a recorrente reafirma que o mandato forense conferido pela recorrida não está regularizado e sustenta que, no despacho de 25.11.2015, o tribunal a quo adiou sine die a decisão, pelo que o despacho recorrido é, nesta parte, nulo.

A recorrente não tem razão. O trecho da fundamentação do despacho de 25.11.2015 que a recorrente transcreve não se sobrepõe à parte dispositiva, inequívoca no sentido do indeferimento do requerimento de extinção da instância com fundamento em irregularidade do mandato. Trata-se, pois, de uma decisão definitiva desta questão, transitada em julgado. Não pode, pois, a mesma questão ser reaberta.

4.ª questão:

A recorrente sustenta que o contrato de cessão de créditos celebrado entre o Banco, S.A. e a C., S.A. é nulo por falta de citação e de consentimento do devedor, bem como de habilitação da recorrente.

Ressalvando, naturalmente, o devido respeito, a argumentação expendida pela recorrente sobre esta questão não faz qualquer sentido. O próprio enunciado da questão é parcialmente ininteligível.

Desde logo, a falta de citação do devedor e de habilitação da recorrente que esta última invoca reportam-se a que processo? Em vão procurámos resposta para esta questão nas alegações de recurso.

Por outro lado, a omissão das referidas citação e habilitação num hipotético processo judicial nunca poderiam, por natureza, produzir, no plano substantivo, a nulidade de um contrato.

Ficamos, pois, apenas perante a questão da falta de consentimento do devedor para a cessão de créditos.

O n.º 1 do artigo 577.º do Código Civil estabelece que a cessão de créditos não depende do consentimento do devedor, salvo se for interdita por determinação da lei ou convenção das partes ou os créditos cedidos estejam, pela própria natureza da prestação, ligados à pessoa do credor.

A recorrente afirma que a cessão de créditos realizada entre o Banco, S.A. e a C., S.A. “deveria ter o especial consentimento do devedor por ser um crédito bancário, por a lei e a convenção das partes assim o determinar numa relação bancária, a que acresce que o crédito estava pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor banco”. Como é evidente, o simples facto de o objecto da cessão ser um crédito bancário não a torna dependente do consentimento do devedor. Inexiste lei que o estabeleça e a alegada convenção das partes também não está demonstrada. A afirmação de que o crédito estava, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor banco, também é infundada.

A invocação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2016 neste contexto é descabida, desde logo porque o mesmo se reporta à cessão da posição contratual (artigos 424.º a 427.º do Código Civil) e não à cessão de créditos.

Por tudo isto, é manifesta a falta de razão da recorrente.

5.ª questão:

A recorrente pretende a anulação da inscrição no registo predial do contrato de cessão de créditos celebrado entre o Banco, S.A. e a C., S.A. “com base na cessação da actividade da exequente e liquidação do seu património” (página 23 das alegações). Entende a recorrente que a decisão judicial que vier a ordenar a cessação da actividade e a liquidação do património da recorrida terá como consequência a extinção dos direitos hipotecários de que esta é titular, pelo que o registo destes últimos será cancelado nos termos da alínea c) do artigo 16.º do Código do Registo Predial (conclusão EE). 

Também aqui, a falta de razão da recorrente é evidente, desde logo porque, como concluímos anteriormente, a cessação da actividade da recorrida em Portugal e a liquidação do seu património que aqui se situe não serão decididas nos presentes embargos. Remetemos para o que afirmámos a propósito da 2.ª questão. Logo, não se verifica o fundamento invocado pela recorrente para a anulação da inscrição que refere.

6.ª questão:

A recorrente sustenta que o contrato de cessão de créditos celebrado entre o Banco, S.A. e a C., S.A. é nulo por não estar compreendido no objecto social desta última.

Mais uma vez, a recorrente carece de razão. Ainda que o referido contrato não estivesse compreendido no objecto social da C., S.A., o mesmo não seria inválido por essa razão, como decorre dos n.ºs 1 e 4 do artigo 6.º do CSC.

O n.º 1 deste artigo estabelece que a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular. O n.º 4 dispõe que as cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos não limitam a capacidade da sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade no dever de não excederem esse objecto ou de não praticarem esses actos. 

Resulta destas normas que a capacidade da sociedade comercial não é limitada pelo seu objecto social. A sociedade tem capacidade para ser titular de todos os direitos e para estar adstrita a todas as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, com as únicas excepções acima referidas. Ora, o fim de qualquer sociedade comercial é a obtenção de lucros, não se confundindo com o objecto social. Logo, uma sociedade comercial terá capacidade para praticar qualquer acto que se coadune com o referido fim, ainda que não caiba no seu objecto. Nesta última hipótese, a validade do acto não é afectada, situando-se noutro nível as consequências de se ter excedido o objecto social – leia-se, sobre esta matéria, JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, volume II, 4.ª edição, p. 189 a 196.

Isto basta para concluir que, ainda que excedesse o objecto social da C., S.A., o contrato de cessão de créditos celebrado entre esta e o Banco, S.A. seria válido.

7.ª questão:

A recorrente sustenta que o contrato de cessão de créditos celebrado entre a C., S.A. e a recorrida é nulo por não ter sido comunicado aos devedores.

Porém, desde logo, essa falta de comunicação não está demonstrada no processo. Trata-se de uma alegação da recorrente sem qualquer fundamento.

Por outro lado, ainda que tal falta de comunicação se verificasse, a consequência não seria a nulidade da cessão de créditos, mas a sua simples ineficácia em relação aos devedores, nos termos do artigo 583.º do Código Civil.

8.ª questão:

Finalmente, a recorrente invocou o benefício da excussão. Porém, ao contrário do que acontece relativamente ao fiador (artigo 638.º do Código Civil), a lei não atribui tal benefício ao proprietário de bens onerados com hipoteca que não seja devedor. A recorrente não invoca qualquer norma que lhe atribua tal direito, o que é natural, pois a mesma não existe.

Em conclusão:

Improcedem todas as conclusões do recurso, razão pela qual deverá ser negado provimento a este último, confirmando-se a decisão recorrida.

Decisão:

Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Notifique.

*

Évora, 30 de Maio de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta 


Acórdão da Relação de Évora de 11.01.2024

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