Processo n.º 1041/14.6TBPTM-C.E1
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Sumário:
1 – A sociedade comercial
estrangeira que viole o disposto no n.º 1 do artigo 4.º do Código das
Sociedades Comerciais mantém a personalidade jurídica que lhe seja atribuída pela
sua lei pessoal, pelo que tem personalidade e capacidade judiciárias.
2 – Os embargos de executado
não constituem meio
processual idóneo para obter a condenação da sociedade comercial estrangeira
que viole o disposto no n.º 1 do artigo 4.º do Código
das Sociedades Comerciais a cessar a sua actividade em Portugal e a liquidação do património da mesma
sociedade aqui situado, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.
3 – A capacidade da
sociedade comercial não é limitada pelo seu objecto social.
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Em embargos de executado deduzidos
por G. – Promoção Imobiliária, Lda., contra H. Lux, SARL, a embargante interpôs
recurso de apelação do despacho saneador, formulando as seguintes conclusões:
A) Sem prejuízo da apelante ter
interposto recurso do despacho saneador na parte em que julgou a determinação
das custas a cargo da executada e a aplicação de sanção processual de taxa
sancionatória excepcional, o que foi feito tempestivamente em recurso próprio,
o presente recurso é apresentado por existirem fundadas reservas relativamente
à (falta de) fundamentação do tribunal na decisão sobre a que julgou improcedentes
as excepções invocadas, sendo que tais questões também poderiam ter sido
analisadas pela discussão oral desta questão na audiência prévia, entretanto dispensada,
conforme 2.º § do despacho saneador. O presente recurso é, assim, também,
apresentado como forma de acautelar os direitos do apelante face a uma decisão
cuja motivação não se afigura clara.
B) Importa recordar que a apelante
não é devedora de qualquer crédito à apelada, ou aos anteriores cedentes do
crédito hipotecário, sendo antes apenas um interveniente enganado pela complexa
teia de sistemas de créditos bancários à construção.
C) De facto, apelada exequente e
primitivos cedentes do crédito hipotecário só têm contra a ora apelante,
executada nos autos, um crédito hipotecário, cujas hipotecas foram
enganosamente registadas e não distratadas com a cumplicidade de construtora e banco
e ardilosamente cedido entre participadas do banco e compradoras de ativos
tóxicos em Portugal, sem que alguma vez a executada, ou mesmo o devedor
original, o tenha consentido.
D) Perante a flagrante injustiça,
a apelante fez uso do direito que lhe assiste o artigo 731.º do CPC, utilizando,
além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729.º, na parte em que
sejam aplicáveis, quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no
processo de declaração.
E) Foi no uso deste direito que a apelante
invocou nos seus embargos de executado diversos fundamentos de oposição, a
saber:
i) A falta de personalidade, ou de
capacidade judiciária da exequente para figurar na presente lide;
ii) A falta de prova do mandato da
exequente, ou insuficiência ou irregularidade do mesmo;
iii) A inexistência de título
executivo quanto à executada;
iv) A nulidade do contrato de
cessão de créditos entre o Banco, S.A., à C., S.A., por inexistência de citação
do devedor e falta de habilitação da exequente;
v) A ilegalidade do registo
predial no registo do contrato de cessão de créditos entre o Banco, S.A. à C.,
S.A., mormente nos termos da alínea c) do art.º 16 do Código de Registo
Predial;
vi) A existência de litispendência
dos presentes autos com a ação que se encontra a correr termos no 1.º Juízo
Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Portimão, processo n.º
1015/11.9BPTM;
vii) A nulidade da cessão de
créditos operada entre o banco e a C., S.A., por ser contrário à lei o negócio
celebrado, quer porque o seu objecto social não o permite, quer por falta de
resolução do negócio, quer ainda por falta de citação do devedor principal;
viii) A nulidade da cessão de
créditos operada entre a exequente e a C., S.A.;
ix) A redução da hipoteca;
x) A condenação do Banco, S.A. em
litigância de má-fé, enriquecimento sem causa e extinção da hipoteca;
xi) O benefício de excussão prévia
do património da devedora principal, suspendendo-se os presentes autos quando à
executada;
xii) E posterior aos embargos, no
requerimento de folhas 461 a 465, o conhecimento oficioso da nulidade da cessão
de crédito por força do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2016,
publicado em Diário da Republica na 1.ª série, n.º 4, de 7 de Janeiro de 2016,
alegando, em síntese, que a cessão de crédito é interdita por lei a
instituições que não sejam instituições de crédito.
F) Sobre a falta de personalidade,
ou de capacidade judiciária, o tribunal a
quo não põe em causa o direito da executada, mas considera que esse pedido
não é compatível com a função destinada ao apenso declarativo de oposição
mediante embargos de executado.
G) Não assiste razão ao tribunal a quo na medida em que, como é admitido
pelas partes, a executada não é a devedora originária, nem parte na relação
material da obrigação exequenda, pelo que só foi confrontada com a questão na
execução, sendo obrigada a opor-se em sede de embargos.
H) A executada, antes da execução,
não conhecia, nem tinha qualquer interesse directo, ou legitimidade processual,
que justificasse demandar a exequente numa acção a pedir a cessação da
atividade da exequente e liquidação do seu património.
I) A exequente não juntou qualquer
certidão comercial, mas apenas um número de identificação de pessoa colectiva
não residente para efectuar em Portugal um acto isolado, apesar da própria
cessão de créditos ser há mais de um ano e de centenas de activos e milhões de
euros e portanto, objetivamente, não um acto isolado.
J) Assim, a executada, na sua
defesa, para além dos meios de defesa próprios dos embargos, solicitou e bem a
intervenção do Ministério Público (a quem cabe a legitimação activa para a
acção do artigo 4.º, n.º 3, do CSC) para a verificação do incumprimento de
obrigações fiscais da exequente, assim como para ordenar a cessação e
liquidação do património à luz do artigo 4.º do Código das Sociedades Comerciais
o que, a confirmar-se, obrigará à nulidade do processo, excepção dilatória não
suprível, de conhecimento oficioso, vide alínea b) do art.º 577 CPC.
K) Por outro lado, a questão é
matéria de enormíssima relevância de interesse público que cabe especialmente
ao ministério público e que ultrapassa a presente execução. Nas palavras do
Prof. Dr. Pedro Leitão Pais de Vasconcellos, “os interesses protegidos pelo
art. 4.º são aqueles para os quais o seu regime jurídico apresenta utilidade
para atingir o fim do sujeito que interesse ao direito proteger. Estes fins são
de duas ordens: por um lado, o regime do art. 4.º do CSC é útil proteger o
comércio em geral: a concorrência, o mercado, o lucro, a troca, por exemplo. …
A par destes interesses, verificam-se interesses colectivos, como sucede com a
protecção de direitos de personalidade e dados pessoais relativamente a
sociedades que emitam dívida ao público (por exemplo, papel comercial) ….
Nestes casos, face à dispersão dos interesses pela coletividade, é fundamental
a protecção por parte do Ministério Público. O mesmo regime é também útil para
proteger os “interesses individuais homogéneos”, que consistem no reflexo
particular de alguns fins protegidos pelo art.º 4.º CSC. O interesse de um
concorrente na lealdade da concorrência, ou na estabilidade do mercado. Para
além destes interesses que são gerais, o art.º 4.º CSC é útil para a protecção
de fins específicos de determinados sujeitos. Ao obrigar à instituição de uma representação
permanente e ao respeito pelas regras de registo, o art.º 4.º é útil para informações
sobre a sociedade comercial estrangeira que permite accioná-la judicialmente,
por exemplo, ou que permite enviar-lhe uma qualquer declaração negocial. Também
estes interesses particulares são relevantes para o art.º 4.º n.º 3 do CSC,
porquanto sem este regime o art.º 4.º, n.º 1 deixa de apresentar uma tutela
para as pessoas que ele pretende proteger.”
L) No caso concreto, sendo a
cessão de créditos que subjaz a execução uma operação com um valor de aquisição
de créditos hipotecários de € 15.400.000,00 (quinze milhões e quatrocentos mil
euros), correspondente a centenas de créditos hipotecários, uma decisão do Ministério
Público no sentido da verificação da situação, não só trará uma eventual
concreta e relevante contingência fiscal de incumprimento de obrigações fiscais
da exequente, mas pode levantar o véu sobre a duvidosa legalidade do mercado de
transmissão dos activos tóxicos das instituições financeiras em Portugal a
operadores não registados.
M) Por outro lado, não podemos
concordar com a posição restritiva e simplista que defende o tribunal a quo quando afirma que a sociedade com
sede no estrangeiro não se encontra obrigada às disposições nacionais no que
respeita ao registo da sua constituição e capacidade para praticar actos vinculativos,
senão vejamos:
N) Sem prejuízo da douta troca de
opiniões entre autor do artigo 4.º do CSC e críticos (Prof. Dr. António Caeiro
e Prof. Dr. Moura Ramos), a única obra doutrinária específica particularmente
recente sobre o artigo 4.º do CSC é da autoria do Prof. Dr. Pedro Leitão Pais
de Vasconcelos.
O) Refere o citado professor na
obra citada, folhas 52 e 53, “No caso das sociedades comerciais portuguesas
constituídas em Portugal, a falta de registo importa a falta de personalidade
jurídica. No caso das sociedades comerciais portuguesas constituídas noutro
estado (e admitindo que tenham adquirido personalidade jurídica de acordo com a
lei desse estado) estas podem manter a sua personalidade jurídica (art.º 3.º
n.º 2), desde que procedam ao registo do contrato junto do registo comercial
português. O art.º 3.º n.º 3 do CSC determina que o regime do art.º 3.º n.º 2
do CSC apenas atinge os seus efeitos com o registo do contrato. Assim, quer a
sociedade comercial portuguesa tenha sido constituída em Portugal ou noutro
estado, a falta de registo implica a falta de personalidade jurídica. Em
consequência, todas as sociedades comerciais portuguesas estão obrigadas a proceder
ao registo do contrato, sob pena de falta de personalidade jurídica. Na prática,
a consequência aplicada é a da inactividade da sociedade comercial enquanto
tal… Uma sociedade comercial portuguesa que pretenda exercer a actividade
durante 1 (um) ano sem proceder ao registo, não o pode fazer, porquanto não
beneficia de personalidade jurídica. Como tal as sociedades comerciais portuguesas
não podem exercer atividade enquanto pessoas coletivas sem procederem ao
registo. Por sua vez, as sociedades comerciais estrangeiras podem exercer a actividade
em Portugal por 1 (um) ano sem estabelecer em Portugal uma representação permanente
e cumprirem as regras de registo comercial. Como tal, durante um ano, estão em
vantagem sobre as sociedades comerciais portuguesas… Como se pode concluir,
durante o primeiro ano de actividade as sociedades comerciais estrangeiras
estão em vantagem face às suas congéneres portuguesas. Mas, passado um ano, ou
logo que decidam exercer atividade por mais de 1 (um) ano, as sociedades
comerciais estrangeiras deixam de ter essa vantagem, e passam a ter de
estabelecer em Portugal uma representação permanente e cumprirem as regras de
registo comercial, tal como sucede com as sociedades comerciais portuguesas.”
P) As conclusões da obra
doutrinária citada não deixam qualquer dúvida, que, objectivamente, estando uma
sociedade comercial estrangeira, como é o caso da exequente, a exercer a sua
atividade em Portugal há mais de 1 (um) ano, está obrigada a proceder ao
registo comercial, ou a instituir uma representação permanente, sob pena de
falta de personalidade jurídica e consequentemente, falta de personalidade
judiciária.
Q) Está, pois, errada e ferida de
nulidade a decisão do tribunal a quo quando
considerou improcedente por não provada a excepção dilatória de falta de personalidade
e de capacidade judiciárias da sociedade exequente e quando julgou verificada a
excepção dilatória inominada de inadmissibilidade do pedido de cessação de actividade
da sociedade de acordo com o artigo 4.º do Código das Sociedades Comerciais,
absolvendo a exequente da instância.
R) Ficaram ainda erradamente
prejudicados os pedidos de junção da certidão comercial, de solicitação de
intervenção do Ministério Público, de citação dos administradores da exequente
bem como das pessoas que praticaram actos de eventuais omissões de registo
comercial e fiscal.
S) Deve ser antes decidido nos
termos solicitados nos embargos, solicitando-se a intervenção do ministério público
no sentido de verificar concretamente a actividade irregular e ilegal da
exequente.
T) Sobre a falta de prova do
mandato da exequente, ou insuficiência ou irregularidade do mesmo.
U) Refere o tribunal a quo, no despacho saneador, que “a
existência e validade do mandato conferido à sociedade F. – Consultoria e Gestão
de Créditos S.A. foi objecto de despacho constante de fls. 286, no qual se
indeferiu a extinção dos autos por falta de representação válida.”.
V) O referido despacho não junta a
procuração cujo prazo de validade se encontra ultrapassado, nem mesmo a cota
registada no citius posterior ao despacho junta a referida procuração, pelo que
a executada mantem válida a alegação de que o mandato não está regularizado, ao
contrário do que refere o referido despacho de folhas 286.
W) Por último, mostra-se infundada
a decisão do tribunal a quo no
despacho saneador quando refere que “a existência e validade do mandato
conferido à sociedade F. – Consultoria e Gestão de Créditos S.A. foi objecto de
despacho constante de fls. 286”, porquanto no referido despacho de fls. 286, o tribunal
adiou “sine die” a decisão quando afirmou “A extinção da instância por falta de
regularização do mandato é prematura.”
X) Entende, pois, a executada que
a decisão do tribunal a quo está
ferida de nulidade, quer porque está em oposição com a prévia decisão que
entendeu prematura a extinção da instância por falta de regularização do
mandato, assim como a decisão do despacho saneador contem um vício claro de
fundamentação, pois não permite à executada pronunciar-se sobre a procuração
que nunca lhe foi notificada.
Y) Sobre a nulidade do contrato de
cessão de créditos entre o Banco, S.A. à C., S.A. (por inexistência de citação
do devedor e falta de habilitação da exequente) e ao contrário do que entendeu
o tribunal a quo, a apelante não confunde
a necessidade de notificar o devedor, com a sua própria qualidade de terceira
parte aos contratos de cessão e contrato de mútuo pois, desde a data da sua escritura
de compra das fracções com hipoteca, que “discute” e “luta judicialmente” pelo
distrate das mesmas.
Z) Tanto assim é que é o próprio tribunal
a quo que enuncia como temas de prova
para a audiência de discussão e julgamento dúvidas sobre a existência da dívida
e em que termos, pronunciando-se favoravelmente pelo chamamento do empregado bancário
responsável.
AA) Conclui a executada que, face
aos argumentos estribados e à factualidade descrita, deveria o tribunal a quo ter em especial atenção que a
cedência do crédito deveria ter o especial consentimento do devedor por ser um
crédito bancário, por a lei e a convenção das partes assim o determinar numa
relação bancária, a que acresce que o crédito estava pela própria natureza da
prestação, ligado à pessoa do credor banco.
BB) E, acessoriamente, conforme já
explicado, a exequente, ora apelada, terá que se habilitar no processo,
situação esta que obriga à prévia regularização do registo comercial.
CC) Nesse sentido, a preocupação
visada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2016, referente ao recurso
de uniformização de jurisprudência 2475/10.0YXLSB.L1.S1-A tem especial
fundamento neste caso, pois a exequente, sucessiva cessionária dos créditos
cedidos, não se encontra registada em Portugal, limitando de facto e de direito
a responsabilidade sobre a imputação de danos.
DD) Sobre a ilegalidade do registo
predial no registo do contrato de cessão de créditos entre o Banco, S.A. à C.,
S.A., o tribunal a quo não põe em
causa o direito da executada pedir a anulação da inscrição no registo predial
nos moldes em que é solicitada, apenas considerando que constitui um pedido
próprio de uma acção declarativa constitutiva.
EE) Entende a apelante que a
decisão judicial que ordene a cessação da actividade e liquidação do seu
património da apelada terá como consequência a extinção dos direitos
hipotecários que esta goza, porque serão liquidados e, concomitantemente, os
registos hipotecários em nome da exequente serão cancelados com base na
extinção do registo da cessão de créditos nos termos da alínea c) do citado
art.º 16 CRP.
FF) Sobre a nulidade da cessão de
créditos operada entre o Banco, S.A. e a C., S.A., por ser contrário à lei o
negócio celebrado, o tribunal a quo
entendeu erradamente que “…verifica-se, assim, a falta de legitimidade da
embargante em arguir a limitação da capacidade da sociedade C., S.A. que
determina a manifesta improcedência da excepção de invocada de nulidade por
violação do disposto no artigo 6.º, n.º 4 do CSC.”… e sobre a resolução do
negócio julgou que “…é manifestamente despiciendo arguir a falta de interpelação
quando a executada que refere à saciedade a existência de outro processo no
qual se demandou a devedor acabou por ser citada em termos que permitiram
conhecer que o exequente - à data, Banco P., S.A. – exigia-lhe o pagamento dos
montantes em dívida tendo, por operada, de forma tácita, a condição resolutiva
do contrato através da sua citação.”
GG) Conclui a apelante que além
das razões pelas quais entende que tem legitimidade para suscitar a nulidade da
cessão de créditos, acrescem outras novas razões.
HH) No processo em tudo análogo ao
presente, em que são partes a ora exequente e os familiares do sócio gerente da
ora apelante, que corre os seus termos na mesma Comarca (Faro, Silves – Inst.
Central – 2.ª Secção de Execução – J1, Processo n.º 1040/14.8TBPTM-A), a
exequente afirma que foi oportunamente e devidamente comunicado aos devedores a
cessão operada, tendo os executados arguido que não é verdade porquanto as
moradas utilizadas não são as dos contratos e, mesmo a admitir novas moradas, o
que se concede por dever profissional, os endereços utilizados tem todos os
códigos postais errados, concluindo que se está perante um caso de total e
absoluta incompetência, ou de má-fé, cabendo ao exequente o ónus da prova do
oposto.
II) Sobre o benefício de excussão
prévia entende a apelante a decisão do tribunal a quo é prematura porquanto, quando decide que ao não existir a
penhora de outros bens não onerados com a garantia real para satisfação do
crédito detido pela exequente, a executada não pode reclamar o reconhecimento
da insuficiência dos bens dados em garantia, o julgamento pode provar o oposto,
ou seja: que existiu penhora de outros bens onerados com garantia real para
satisfação do crédito detido pelo banco, os quais não foram cedidos parcialmente
à ora exequente, apelada, omitindo o banco que tais bens primeiramente
penhorados permitem à ora executada e apelante reclamar o reconhecimento da
suficiência dos bens dados em garantia à dividia originária.
Nestes termos e nos demais de
Direito aplicáveis, deve ser concedido provimento ao presente recurso,
julgando-se o mesmo procedente e revogando-se o despacho saneador no que
respeita à parte em que julgou improcedentes as excepções invocadas,
substituindo-se por outra nos termos melhor solicitados em sede de embargos.
A recorrida ofereceu
contra-alegações, com as seguintes conclusões:
A) O tribunal a quo julgou, e bem, improcedentes as excepções apresentadas pela aqui
recorrente.
B) Para o efeito, o tribunal a quo considerou que são improcedentes
as excepções de falta de personalidade judiciária, da insuficiência do título,
da nulidade de cessão de créditos entre o Banco P., S.A. e a C., S.A. e da
cessão de créditos entre a C., S.A. e a ora recorrida, da nulidade decorrente
da violação do sigilo bancário, da nulidade de notificação da cessão para
efeitos do artigo 583º, n.º 1, do Código Civil à devedora MX, Lda. e a
invocação do benefício de excussão.
C) O tribunal a quo considerou ainda improcedente a falta de resolução do
contrato de mútuo, a extinção dos autos por falta de representação válida e
julgou não verificada a excepção dilatória de litispendência.
D) Por fim, absolveu a exequente
da instância quanto aos pedidos de nulidade do registo e de redução da
hipoteca, e indeferiu por inepto o pedido de condenação do Banco P., S.A..
E) De tal forma que foram fixados
e bem, o objecto do litígio e os temas da prova.
F) O BC, S.A. celebrou com a MX,
Lda. um contrato de mútuo com hipoteca celebrado por escritura pública em
29.07.2003, outorgada por VB, Notário do Cartório Notarial de (...), inscrita
no Livro 367-B, de fls. 10 a fls. 13.
G) Nos termos do contrato supra
identificado, o BC, S.A. concedeu à MX, Lda. um empréstimo no valor de €
2.000.000,00, para financiamento à construção de imóveis destinados à
habitação.
H) Esta escritura de mútuo com
hipoteca consubstancia um documento exarado por notário que importa a
constituição e reconhecimento de obrigações, nos termos do disposto o artigo
703.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.
I) Como garantia do pagamento de
todas as responsabilidades assumidas ou a assumir pela MX, Lda., até ao valor
de capital de € 2.000.000,00, no valor máximo assegurado de € 2.699.800,00,
provenientes de todas e quaisquer operações bancárias, bem como dos respectivos
juros remuneratórios acordados e das despesas havidas - que se computaram para
efeitos de registo em € 80.000,00 - foi constituída uma hipoteca, a favor do BC,
S.A., sobre os seguintes imóveis:
a) Prédio urbano constituído por
lote de terreno para construção, designado por lote cinco, sito (…), descrito
na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 15251 do livro B - 39
(actual descrição 3298 da freguesia de …), inscrito na respectiva matriz sob o
artigo 2732 (actual 5709);
b) Prédio urbano constituído por
lote de terreno para construção, designado por lote quarenta e cinco, sito em (…),
descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 3645, inscrito na
respectiva matriz sob o artigo 5566.
J) O prédio referido na alínea a)
foi constituído em propriedade horizontal e dividido em várias fracções, entre
as quais as seguintes: “T”, “Z”, “AC”, “AF”, “AL”, e “AM”.
K) Sucede que estes imóveis
encontram-se actualmente registados a favor da ora recorrente na Conservatória do
Registo Predial de (…), pela Ap. 16 de 2006/09/22.
L) E não obstante ter sido
concretizada a transmissão de propriedade, os imóveis dados como garantia
continuam onerados com a supra mencionada inscrição hipotecária, nos exactos
termos em que a mesma foi constituída a favor do BC, S.A., a qual se transmite
com a transmissão de propriedade.
M) Sendo de ressalvar desde já que
a recorrida não renunciou àquelas garantias, nem, tão pouco, foi ressarcida da
totalidade da dívida.
N) Pelo que, os imóveis continuam
a garantir o crédito que goza de garantia real por força do direito de sequela
plasmado nos artigos 721.º e 818.º do CC.
O) E, apesar de a recorrente ser
terceira perante a relação obrigacional, não o é face à execução, circunstância
essa que impôs que a acção executiva tenha sido movida contra esta, de modo a
permitir a penhora dos bens com vista ao ressarcimento do crédito exequendo.
P) A hipoteca reveste a natureza
de um direito real de garantia, na medida em que apresenta as notas
características dos direitos reais, como p.e. o direito de sequela, segundo o
qual, e como refere MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, 441, “ (…) o seu titular
poder acompanhar a coisa, independentemente de quaisquer vicissitudes, onde
quer que ela se encontre (…)”.
Q) Pelo que tal significa que o
credor hipotecário poderá ver solvido o seu crédito, por força do bem
hipotecado, onde e com quem quer que este esteja, pois essa é, justamente, a
função jurídico-social e económica da hipoteca, o que se infere, de resto, do n.º
1 do artigo 686º do Código Civil ao estatuir que: “a hipoteca confere ao credor
o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas,
pertencentes ao devedor ou a terceiro (...)”.
R) Por outro lado, é forçoso
concluir que a recorrida é parte legítima nos presentes autos.
S) Tendo procedido à sua
habilitação ab initio, fundamentando
a sua legitimidade e procedendo à junção da escritura de cessão de créditos,
bem como do respectivo documento complementar.
T) Ora a recorrida fez junção aos
autos de prova documental bastante, que comprova a sua legitimidade.
U) E com a propositura da acção
executiva, a recorrente tomou conhecimento da cessão de créditos operada.
V) Tendo-se, em tal momento, por
efectuada a notificação a que se refere o artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil.
W) Acresce que nos termos do
disposto no artigo 356.º do Código Processo Civil, a habilitação de cessionário
somente poderia ter sido contestada com fundamento na impugnação da validade do
acto de cessão, ou no facto da transmissão ter sido feita para tornar a posição
da recorrente mais difícil no processo.
X) E a recorrente em momento algum
questiona a validade da cessão ou alega que a transmissão foi feita para tornar
a sua posição mais difícil no processo.
Y) Por outro lado, cumpre
esclarecer que a recorrida é uma sociedade de responsabilidade limitada,
legalmente constituída, em conformidade e sobre as leis do Grão Ducado do
Luxemburgo, com sede em (…) - Grão Ducado do Luxemburgo, e registada no Registo
de Comércio e Sociedades do Luxemburgo, sob o n.º (…).
Z) Encontrando-se a sua actividade
devidamente regularizada junto dos serviços nacionais, sendo portadora do
número de identificação de entidade equiparada estrangeira (…) e encontrando-se
devidamente autorizada para efeitos de aquisição de créditos hipotecários –
cfr. cópia da certidão de identificação de entidade equiparada estrangeira
junta como Doc. n.º 1 na contestação.
AA) Assim, a recorrida encontra-se
devidamente representada, formal e materialmente, por F. – Consultoria e Gestão
de Créditos SA, com sede em (…), matriculada na Conservatória do Registo
Comercial de (…), com o número único de matrícula e de pessoa colectiva (…), no
exercício do poder atribuído pela procuração outorgada, em 23 de Janeiro de
2013, no Cartório Notarial de Luxemburgo - Notário (…), devidamente apostilhada
pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros do Grão-Ducado do Luxemburgo em 24 de
Janeiro de 2013 sob o nº (…), nas pessoas dos seus procuradores constituídos,
com poderes suficientes para o acto, nos termos da Procuração outorgada em 1 de
Abril de 2014, no Cartório Notarial sito em (…), na Rua (…) - Notário (…).
BB) Assim e ao contrário do que a recorrente
pretende fazer crer, a sociedade ora recorrida tem personalidade e capacidade
judiciária, e configura uma entidade apta a ser parte processual nos presentes
autos.
CC) No que toca ao mandato, tal
como foi já dito e devidamente comprovado, não existe qualquer insuficiência ou
irregularidade do mesmo.
DD) No requerimento executivo, a recorrida
figura como exequente e outorgou poderes à F. – Consultoria e Gestão de
Créditos SA, através de procuração data de 23 de Janeiro de 2013, no Cartório
Notarial de Luxemburgo – Notário (…), devidamente apostilhada e registada
informaticamente no site www.procurações online.mj.pt.
EE) Deste modo, não existe
qualquer falta de personalidade judiciária da ora recorrida, nem tão pouco
existe fundamento para alegar insuficiência ou irregularidade do mandato.
FF) A recorrente questiona a
validade das cessões de créditos operadas.
GG) E também aqui, carecem de
qualquer fundamento os argumentos invocados pela recorrente.
HH) As sucessivas cessões de
créditos foram efectuadas por escritura pública, que acompanharam o
requerimento executivo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido
para os devidos e legais efeitos.
II) Tendo sido efectuados os
competentes registos das cessões de créditos garantidos por hipoteca, junto da
Conservatória do Registo Predial, em cumprimento do art. 2.º, n.º 1 al. h), 1.ª
parte, do Código do Registo Predial.
JJ) Ainda nesta senda, traz a recorrida
à colação o Decreto-lei n.º 298/92.
KK) No entanto, a recorrida na
situação ora controvertida não concede nem pode conceder a aplicação deste
diploma.
LL) É imprescindível esclarecer
que a operação ora contestada em nada tem a ver com as operações bancárias
praticadas em regime de exclusividade pelas Instituições de Crédito e
Sociedades Financeiras à luz do diploma supra citado.
MM) Neste sentido, veja-se as
palavas do acórdão da Relação de Lisboa de 18.11.2008, disponível em
www.dgsi.pt, quando refere que “(…) Ora, no nosso caso em concreto, como se
referiu há uma venda de crédito, ou seja, estamos perante um contrato de compra
e venda subjacente à cessão de crédito. Trata-se de uma operação comercial e
não operação bancária, porquanto não reúne os requisitos que enumeramos para as
operações bancárias, pelo que não é aplicável à presente cessão de créditos o
regime do Decreto-lei n.º (DL n.º 298/1992, de 31.12) - (cfr. art.º 362.º do
Código Comercial). (…)” Negrito e sublinhado nossos.
NN) Nem tão pouco a recorrida tem
legitimidade para invocar nulidades nas cessões de créditos operadas.
OO) A recorrida assume a posição
de terceira em todos estes negócios.
PP) E neste sentido, leia-se o
entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.04.2008, disponível em
www.dgsi.pt, quando menciona que “(…) Seja como for, são de excluir do círculo
dos meios de defesa oponíveis pelo devedor, as circunstâncias que digam
respeito à causa da cessão, pois que estas interessam apenas às relações entre
cedente e cessionário. Nesta medida serão irrelevantes para o devedor os vícios
do contrato de cessão. Tolera-se apenas que o devedor, sob pena de poder vir a
satisfazer o crédito a dobrar, se inteire da real existência da cessão (…)”.
QQ) Mais, é completamente
descabida a invocação do benefício da excussão prévia de bens pela ora recorrente.
RR) Nos termos do disposto no
artigo 752.º do CPC, nas execuções de dívida com garantia real, a penhora inicia-se
pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se
reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução.
SS) E no caso ora controvertido
não se encontra prevista a aplicação do regime do benefício da excussão prévia
de bens.
TT) Por tudo quanto supra exposto,
não se vislumbra a possibilidade de decisão diversa da que foi sabiamente
defendida pelo tribunal a quo,
porquanto se mostra devidamente fundamentada e juridicamente adequada à
realidade constante dos autos.
UU) Na peça apresentada pela recorrente,
vem a mesma arguir a ineptidão do requerimento executivo apresentado pela recorrida,
por insuficiência do título executivo.
VV. Ora, a recorrida encontra-se
em manifesto desacordo com os argumentos deduzidos pela recorrente.
WW) Dispõe o n.º 5 do artigo 10.º
do CPC que “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o
fim e os limites da acção executiva”.
XX) Dessa forma, o título
executivo constitui um “pressuposto de carácter formal da acção executiva,
destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado
suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do
devedor” (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09-12-2010, processo n.º
1999/2001.L1-8, disponível in www.dgsi.pt).
YY) O título executivo assume a
particularidade de demonstração legal bastante do direito a uma prestação,
razão pela qual se impõe, em sede de acção executiva, a dispensa de qualquer
indagação prévia sobre a existência ou subsistência do direito substantivo a
que o mesmo se reporta (nesse sentido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 15-05-2003, processo n.º 02B3251, disponível in www.dgsi.pt).
ZZ) Invoca ainda a recorrente que
“(…) a falta de resolução do contrato de mútuo em relação ao devedor MX, Lda.
constitui uma excepção dilatória material que se reporta à declaração expressa
ou tácita efectuada pelo credor que permite resolver o contrato se o devedor
faltar culposamente ao cumprimento da obrigação que o vinculava (…)”.
AAA) Salvo o devido respeito, a recorrida
não pode deixar de discordar da recorrente.
BBB) No âmbito do processo
executivo n.º 1051/11.9TBPTM, que correu termos no Tribunal de Família e
Menores da Comarca de Portimão, a sociedade MX, Lda. foi regularmente citada
por meio de éditos na pessoa do seu legal representante.
CCC) E deste modo, e nos termos no
disposto na alínea b) do n.º artigo 610.º do CPC “Quando a inexigibilidade derive
da falta de interpelação ou do facto de não ter sido pedido o pagamento no
domicílio do devedor, a dívida considera-se vencida desde a citação”.
DDD) Sendo então certo que após a
citação, o contrato de mútuo que sustenta os presentes autos se encontra
resolvido.
EEE) A sociedade MX, Lda., citada
para se opor à execução, não o fez.
FFF. Tendo concluído não existir
fundamento para apresentar uma oposição à execução com base na falta de
citação.
GGG. Face a tudo quanto exposto,
torna-se forçoso concluir que os fundamentos apresentados pela recorrente não
têm qualquer base legal, pelo que deverão ser julgados totalmente
improcedentes.
O recurso foi admitido, com subida em separado e
efeito meramente devolutivo.
*
As questões a resolver são as seguintes:
1 – Personalidade e capacidade judiciárias da
recorrida;
2 – Admissibilidade da dedução, em sede de embargos de
executado, de pedido de cessação da
actividade da recorrida em Portugal e de liquidação do seu património que aqui
se situe, com fundamento no disposto no n.º 3 do artigo 4.º do Código das
Sociedades Comerciais;
3 – Regularidade, suficiência e
prova do mandato forense da recorrida;
4 – Nulidade do contrato de cessão
de créditos celebrado entre o Banco, S.A. e a C., S.A., por falta de citação e
de consentimento do devedor, bem como de habilitação da recorrente;
5 – Legalidade do registo do
contrato de cessão de créditos celebrado entre o Banco, S.A. e a C., S.A.;
6 – Nulidade do contrato de cessão
de créditos celebrado entre o Banco, S.A. e a C., S.A. por não estar
compreendido no objecto social da segunda;
7 – Nulidade do contrato de cessão
de créditos celebrado entre a C., S.A. e a recorrida por falta de comunicação
do mesmo aos devedores;
8 – Se a recorrente goza do
benefício da excussão.
*
Conhecendo:
1.ª
questão:
A
recorrente sustenta que a recorrida, por ser uma sociedade comercial
estrangeira, exercer actividade em Portugal há mais de 1 ano, não ter aqui
instituído uma representação permanente e não cumprir o
disposto na lei portuguesa sobre registo comercial, carece de personalidade
jurídica e, consequentemente, de personalidade e de capacidade
judiciárias.
Vejamos se é assim.
A
1.ª parte do n.º 1 do artigo 3.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) estabelece
que as sociedades comerciais têm como lei pessoal a
lei do Estado onde se encontre situada a sede principal e efectiva da sua
administração.
Resulta dos documentos anexos ao requerimento executivo e não
suscita controvérsia entre as partes o facto de a recorrida ser uma sociedade
comercial constituída ao abrigo da lei do Luxemburgo e ter a sua sede neste
país, em cujo registo comercial se encontra matriculada. A sua lei pessoal é,
pois, a do Luxemburgo.
O n.º 1 do artigo 4.º do CSC estabelece que a sociedade que não
tenha a sede efectiva em Portugal, mas deseje exercer aqui a sua actividade por
mais de um ano, deve instituir uma representação permanente e cumprir o
disposto na lei portuguesa sobre registo comercial.
Em 15.02.2013, através de um contrato de cessão de créditos
celebrado em Portugal, a recorrida adquiriu, à sociedade denominada C., S.A., “um conjunto de créditos
litigiosos, hipotecários e não hipotecários, em situação de incumprimento e
cuja resolução já foi declarada, concedidos a vários mutuários, individualmente
identificados no documento complementar” à escritura pública. Em 18.03.2014, a
recorrida instaurou execução contra a recorrente. Isto basta para concluir que
a recorrida desenvolve actividade em Portugal há mais de 1 ano.
Não dispomos de elementos que nos permitam concluir se a sociedade
denominada F. – Consultoria e Gestão de Créditos,
S.A., pode ser considerada uma representante permanente da recorrida em
Portugal e se esta cumpre o disposto na lei portuguesa
sobre registo comercial. Contudo, ainda que nenhuma dessas condições se
verifique e que, em consequência, a recorrida esteja a violar o disposto no n.º
1 do artigo 4.º do CSC, a recorrente carece de razão.
As consequências da violação do n.º 1 do artigo 4.º do CSC são as
estabelecidas nos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo. A sociedade estrangeira fica
obrigada pelos actos praticados em seu nome em Portugal e com ela respondem
solidariamente as pessoas que tenham praticado tais actos, bem como os gerentes
ou administradores da mesma sociedade. Por outro lado, o tribunal pode, a
requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público, ordenar que a
sociedade cesse a sua actividade em Portugal e decretar a liquidação do seu
património aqui situado.
A tese da recorrente baseia-se numa interpretação errónea dos
citados n.ºs 2 e 3 do artigo 4.º do CSC. Não resulta destas normas que a
sociedade estrangeira que viole o n.º 1 deste artigo careça de personalidade
jurídica e, consequentemente, de personalidade e de capacidade
judiciárias. Mais, tal solução seria absurda.
Recordemos que, nos termos da 1.ª parte do n.º 1 do artigo
3.º do CSC, as sociedades comerciais têm como lei
pessoal a lei do Estado onde se encontre situada a sede principal e efectiva da
sua administração. O mesmo é dizer que elas existem como tais por efeito da
referida lei. Logo, se essa lei for estrangeira, seria um contrassenso os n.ºs
2 e 3 do artigo 4.º do CSC estabelecerem que a violação do n.º 1 tivesse como
consequência a sociedade estrangeira não ter personalidade jurídica, perder a
personalidade jurídica ou, sequer, ser tratada em Portugal, perante a nossa lei
e pelos nossos tribunais, como se não tivesse personalidade jurídica.
Assim, a lei portuguesa não pode negar a personalidade jurídica a
uma sociedade estrangeira que a possua por força da sua lei pessoal. Que a lei
portuguesa não pode estabelecer que uma sociedade estrangeira não tem
personalidade jurídica, negando-a ab
initio ou estabelecendo a sua perda em determinadas condições, fora do seu
âmbito de aplicação, constitui uma evidência. Uma tal norma interna estaria,
logo à partida, votada à pura e simples ineficácia. A sociedade estrangeira não
depende da lei portuguesa para existir.
Poderia, contudo, conceber-se que a lei portuguesa estabelecesse
que a sociedade estrangeira, em determinadas condições (por exemplo, se
violasse o n.º 1 do artigo 4.º do CSC), fosse tratada em Portugal, nomeadamente
pelos nossos tribunais, como se não tivesse personalidade jurídica, negando-se-lhe,
consequentemente, personalidade e capacidade judiciárias. Porém, uma tal solução
estaria em contradição com o princípio básico estabelecido na 1.ª
parte do n.º 1 do artigo 3.º do CSC. Se a lei pessoal da sociedade estrangeira
lhe atribui personalidade jurídica, a lei portuguesa reconhece-a como tal.
Mas
há mais. Os próprios n.ºs 2 e 3 do artigo 4.º do CSC pressupõem que a sociedade
estrangeira que viole o n.º 1 continue a ter personalidade jurídica.
Assim,
sem personalidade jurídica, a sociedade estrangeira não poderia ser sujeito
passivo das obrigações que o n.º 2 lhe atribui. E sem personalidade e
capacidade judiciárias, não poderia ser demandada nos tribunais portugueses, com
óbvio prejuízo, desde logo, para os seus credores. O infractor acabaria
beneficiado.
Por
outro lado, em conformidade com os limites que acima assinalámos ao âmbito de
vigência da lei portuguesa, o n.º 3 apenas permite que o tribunal português
ordene que a sociedade estrangeira cesse a sua
actividade no nosso país e decrete a liquidação do seu património que aqui se
situe. Não faria sentido um tribunal português ordenar a cessação de toda a
actividade da sociedade estrangeira, ainda que desenvolvida fora de Portugal, e
decretar a liquidação de todo o seu património. Como expressivamente afirma PEDRO
LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, na obra Sociedades
Comerciais Estrangeiras – O art. 4.º do Código das Sociedades Comerciais,
várias vezes citada pela recorrente, “de modo análogo ao que sucede com as
pessoas que se encontrem clandestinamente em Portugal, que são expulsas do
território, a sociedade comercial estrangeira que tenha uma actividade
clandestina em Portugal também pode ver a sua actividade ser expulsa de
Portugal” (p. 224). É apenas disto que se trata no n.º 3 do artigo 4.º do CSC,
de “expulsar” de Portugal a sociedade estrangeira que não cumpra o disposto no
n.º 1. Continuando a citar o mesmo autor e obra, “a acção incide sobre a
actividade da sociedade e não sobre a sociedade em si, pois a decisão não
extingue a sociedade, apenas a proíbe de ter actividade em Portugal; (…) “ a
acção determina a liquidação do património da sociedade sito em Portugal, mas
não dissolve a sociedade, nem determina a liquidação do restante património da
sociedade, abrangendo a decisão parte limitada do património da sociedade e não
sendo dirigida nem à pessoa colectiva, nem à totalidade da sua esfera
patrimonial” (p. 227).
Além de que, para poder ser demandada e condenada nos termos do
n.º 3 do artigo 4.º do CSC, a sociedade comercial estrangeira tem de estar
dotada de personalidade e de capacidade judiciárias. Recorrendo novamente à
lição de PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, obra citada, página 262, “quando a
sociedade comercial estrangeira não tem representante permanente em Portugal, a
legitimidade é desta e só desta, que agirá em juízo directamente”; e “a
sentença proferida, sendo a acção julgada procedente, condena a sociedade a
cessar a sua actividade em Portugal e decreta a liquidação do seu património em
Portugal” (p. 269). Ou seja, é a própria sociedade comercial estrangeira que infrinja
o n.º 1 do artigo 4.º do CSC que é demandada e, sendo a acção julgada
procedente, condenada, o que, obviamente, só será possível se tiver
personalidade e capacidade judiciárias.
Concluindo, a sociedade estrangeira que viole o n.º 1 do
artigo 4.º do CSC mantém a sua personalidade jurídica, mesmo na ordem jurídica
interna. Consequentemente, inexiste fundamento para lhe negar personalidade e
capacidade judiciárias.
2.ª
questão:
Na petição de embargos, a recorrente requereu que o
tribunal a quo ordenasse “a cessação
e liquidação do património da exequente o que obrigará à nulidade do processo,
excepção dilatória não suprível, de conhecimento oficioso, vide b) do art. 577 CPC”.
O tribunal a quo
entendeu que “a cessação da actividade da exequente e a liquidação do
património não são compatíveis com a função destinada ao apenso declarativo de
oposição mediante embargos de executado” e, em conformidade, julgou “verificada
a excepção dilatória inominada de inadmissibilidade do pedido de cessação de
actividade da sociedade de acordo com o artigo 4.º do Código das Sociedades
Comerciais”, absolvendo a recorrida da instância quanto ao mesmo.
Nas suas alegações de recurso, a recorrente sustenta
que a incompatibilidade referida pelo tribunal a quo não se verifica, desenvolvendo a sua argumentação sobre essa
matéria nas conclusões G) a L). Porém, tal argumentação passa completamente ao
lado da questão da compatibilidade do pedido em causa com a finalidade legal
dos embargos de executado. A circunstância de a recorrente, devido à posição
que ocupa relativamente à dívida garantida pela hipoteca, só na execução ter
sido confrontada com a questão da alegada violação do n.º 1 do artigo 4.º do
CSC pela recorrida, seria relevante se estivesse em discussão uma questão de
tempestividade, o que não é o caso. O interesse público na cessação da
actividade da sociedade estrangeira em Portugal e na liquidação do seu
património aqui situado, que é indiscutível, pode ser prosseguido através da
propositura de uma acção judicial autónoma, contra aquela sociedade, por quem
para o efeito tiver legitimidade, não exigindo, portanto, que os embargos de
executado sejam utilizados para se obter tais efeitos jurídicos. Finalmente,
uma decisão judicial no sentido referido no n.º 3 do artigo 4.º do CSC não
determinaria a nulidade do processo executivo, tendo em conta aquilo que
referimos a propósito da 1.ª questão.
A fundamentação expendida pela recorrente a propósito
desta 2.ª questão é, pois, inócua. Não obstante, sempre diremos que concordamos
com o tribunal a quo.
Os embargos de executado têm como finalidade permitir
a este último opor-se a uma execução contra ele proposta e, por essa via,
determinar a extinção desta última, no todo ou em parte, como resulta dos
artigos 728.º, n.º 1, e 732.º, n.º 4, do CPC. Essa oposição pode ser feita,
consoante a natureza do título executivo, com os fundamentos previstos nos
artigos 729.º, 730.º e 731.º do mesmo código. Em qualquer caso, estamos perante
um meio processual de defesa do executado face a uma acção que visa agredir o
seu património com vista à cobrança efectiva de um crédito.
Sendo esta a finalidade dos embargos de executado,
salta à vista que não são eles o meio processual próprio para se obter os
efeitos jurídicos previstos no n.º 3 do artigo 4.º do CSC. Esse meio é uma
acção declarativa comum, proposta pelo ministério público ou por qualquer
interessado contra a sociedade comercial estrangeira que alegadamente esteja a
infringir o disposto no n.º 1 do mesmo artigo, na qual seja pedida a cessação
da actividade daquela sociedade em Portugal e a liquidação do seu património
que aqui se situe. Veja-se, neste sentido, PEDRO
LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, obra citada, páginas 267-270.
3.ª questão:
Por despacho proferido em 25.11.2015, já transitado em
julgado, o tribunal a quo considerou
regularizado o mandato forense conferido pela recorrida e, em consequência,
indeferiu o requerimento de extinção da instância formulado pela recorrente com
fundamento em irregularidade do referido mandato. No despacho recorrido, o
tribunal a quo limitou-se a referir
que aquela questão tinha sido decidida por despacho anterior.
No presente recurso, a recorrente reafirma que o
mandato forense conferido pela recorrida não está regularizado e sustenta que,
no despacho de 25.11.2015, o tribunal a quo adiou sine die a decisão, pelo que o despacho recorrido é, nesta parte,
nulo.
A recorrente não tem razão. O
trecho da fundamentação do despacho de 25.11.2015 que a recorrente transcreve
não se sobrepõe à parte dispositiva, inequívoca no sentido do indeferimento do requerimento de
extinção da instância com fundamento em irregularidade do mandato. Trata-se,
pois, de uma decisão definitiva desta questão, transitada em julgado. Não pode,
pois, a mesma questão ser reaberta.
4.ª questão:
A recorrente sustenta que o
contrato de cessão de créditos celebrado entre o Banco, S.A. e a C., S.A. é
nulo por falta de citação e de consentimento do devedor, bem como de
habilitação da recorrente.
Ressalvando, naturalmente, o
devido respeito, a argumentação expendida pela recorrente sobre esta questão
não faz qualquer sentido. O próprio enunciado da questão é parcialmente
ininteligível.
Desde logo, a falta de citação do
devedor e de habilitação da recorrente que esta última invoca reportam-se a que
processo? Em vão procurámos resposta para esta questão nas alegações de
recurso.
Por outro lado, a omissão das
referidas citação e habilitação num hipotético processo judicial nunca
poderiam, por natureza, produzir, no plano substantivo, a nulidade de um
contrato.
Ficamos, pois, apenas perante a
questão da falta de consentimento do devedor para a cessão de créditos.
O n.º 1 do artigo 577.º do Código
Civil estabelece que a cessão de créditos não depende do consentimento do
devedor, salvo se for interdita por determinação da lei ou convenção das partes
ou os créditos cedidos estejam, pela própria natureza da prestação, ligados à
pessoa do credor.
A recorrente afirma que a cessão
de créditos realizada entre o Banco, S.A. e a C., S.A. “deveria ter o especial
consentimento do devedor por ser um crédito bancário, por a lei e a convenção
das partes assim o determinar numa relação bancária, a que acresce que o
crédito estava pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor
banco”. Como é evidente, o simples facto de o objecto da cessão ser um crédito
bancário não a torna dependente do consentimento do devedor. Inexiste lei que o
estabeleça e a alegada convenção das partes também não está demonstrada. A
afirmação de que o crédito estava, pela própria natureza da prestação, ligado à
pessoa do credor banco, também é infundada.
A invocação do Acórdão de
Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2016 neste
contexto é descabida, desde logo porque o mesmo se reporta à cessão da posição
contratual (artigos 424.º a 427.º do Código Civil) e não à cessão de créditos.
Por tudo isto, é manifesta a falta
de razão da recorrente.
5.ª questão:
A recorrente pretende a anulação
da inscrição no registo predial do contrato de cessão de créditos celebrado
entre o Banco, S.A. e a C., S.A. “com base na cessação da actividade da
exequente e liquidação do seu património” (página 23 das alegações). Entende a
recorrente que a decisão judicial que vier a ordenar a cessação da actividade e
a liquidação do património da recorrida terá como consequência a extinção dos
direitos hipotecários de que esta é titular, pelo que o registo destes últimos
será cancelado nos termos da alínea c) do artigo 16.º do Código do Registo
Predial (conclusão EE).
Também aqui, a falta de razão da
recorrente é evidente, desde logo porque, como concluímos anteriormente, a
cessação da actividade da recorrida em Portugal e a liquidação do seu
património que aqui se
situe não serão decididas nos presentes
embargos. Remetemos para o que afirmámos a propósito da 2.ª questão. Logo, não
se verifica o fundamento invocado pela recorrente para a anulação da inscrição
que refere.
6.ª questão:
A recorrente sustenta que o contrato de cessão de créditos celebrado entre o Banco, S.A. e a C., S.A.
é nulo por não estar compreendido no objecto social desta última.
Mais uma vez, a recorrente carece
de razão. Ainda que o referido contrato não estivesse compreendido no objecto
social da C., S.A., o mesmo não seria inválido por essa razão, como decorre dos
n.ºs 1 e 4 do artigo 6.º do CSC.
O n.º 1 deste artigo estabelece
que a
capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou
convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam
vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular. O n.º 4
dispõe que as cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à
sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos não limitam
a capacidade da sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade no dever de
não excederem esse objecto ou de não praticarem esses actos.
Resulta destas normas que a capacidade da
sociedade comercial não é limitada pelo seu objecto social. A sociedade tem
capacidade para ser titular de todos os direitos e para estar adstrita a todas
as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, com as
únicas excepções acima referidas. Ora, o fim de qualquer sociedade comercial é
a obtenção de lucros, não se confundindo com o objecto social. Logo, uma
sociedade comercial terá capacidade para praticar qualquer acto que se coadune
com o referido fim, ainda que não caiba no seu objecto. Nesta última hipótese,
a validade do acto não é afectada, situando-se noutro nível as consequências de
se ter excedido o objecto social – leia-se, sobre esta matéria, JORGE MANUEL
COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito
Comercial, volume II, 4.ª edição, p. 189 a 196.
Isto basta para concluir que, ainda que excedesse o
objecto social da C., S.A., o contrato de cessão de créditos celebrado entre esta e o Banco,
S.A. seria válido.
7.ª questão:
A recorrente sustenta que o contrato de cessão de créditos celebrado entre a C., S.A. e a recorrida é
nulo por não ter sido comunicado aos devedores.
Porém, desde logo, essa falta de
comunicação não está demonstrada no processo. Trata-se de uma alegação da
recorrente sem qualquer fundamento.
Por outro lado, ainda que tal
falta de comunicação se verificasse, a consequência não seria a nulidade da
cessão de créditos, mas a sua simples ineficácia em relação aos devedores, nos
termos do artigo 583.º do Código Civil.
8.ª questão:
Finalmente, a recorrente invocou o
benefício da excussão. Porém, ao contrário do que acontece relativamente ao
fiador (artigo 638.º do Código Civil), a lei não atribui tal benefício ao
proprietário de bens onerados com hipoteca que não seja devedor. A recorrente
não invoca qualquer norma que lhe atribua tal direito, o que é natural, pois a
mesma não existe.
Em conclusão:
Improcedem todas as conclusões do
recurso, razão pela qual deverá ser negado provimento a este último,
confirmando-se a decisão recorrida.
Decisão:
Acordam os juízes da
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso
improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas
pela recorrente.
Notifique.
*
Évora, 30 de Maio de 2019
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª adjunta