sábado, 6 de julho de 2019

Acórdão da Relação de Évora de 12.06.2019

Processo n.º 945/13.8TBALR.E1

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Sumário:

1 – O Direito dos Seguros parte da noção civilística de dano, embora procedendo a adaptações em algumas hipóteses.

2 – A lei impõe a absoluta e ostensiva clareza do contrato de seguro em matéria de exclusões da cobertura.

3 – Em matéria de interpretação do contrato de seguro, vale o princípio in dubio contra stipulatorum.

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Relatório

Paula propôs a presente acção declarativa comum contra Companhia de Seguros, S.A., formulando os seguintes pedidos: A) Condenação da ré a suportar, a expensas suas, as operações à mão, punho e braço direito da autora, eventuais tratamentos, consultas, medicamentos ou sessões de fisioterapia, cuja necessidade venha a ser apurada em sede de perícia médico-legal a determinar pelo tribunal; B) Condenação da ré a pagar à autora quantia não inferior a € 49.186,20 (€ 4.186,20 de lucros cessantes + € 45.000 pelo quantum doloris, danos morais, sequelas resultantes do acidente e de todos os danos não patrimoniais daí decorrentes), acrescida de juros legais vencidos e vincendos, com as demais e legais consequências.

A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 11.480,16, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde 30.10.2013 até integral pagamento.

A ré recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:

1. A ora recorrente pede a este douto tribunal apenas a verificação e pronúncia sobre a questão da sua condenação no pagamento de danos não patrimoniais no âmbito de um sinistro e de uma apólice de acidentes pessoais.

2. Entre a Santa Casa da Misericórdia de (…) e a ora recorrente foi celebrado um contrato de seguro obrigatório de acidentes pessoais, através da apólice 15/96466, que cobria os acidentes que pudessem ocorrer durante e por causa do exercício das actividades integradas no projecto levado a cabo pela Santa Casa da Misericórdia.

3. O seguro de acidentes pessoais e apólice em causa nos autos prevê e estipula coberturas bem específicas e delimitadas, nomeadamente a cobertura de morte ou invalidez permanente com um limite de 75.000,00€ (cuja análise releva no presente recurso).

4. O tribunal a quo fez errada interpretação da apólice em causa e dos pressupostos para a condenação por indemnização decorrente de danos não patrimoniais.

5. As condições gerais aplicáveis ao contrato de seguro em causa nos autos definem claramente a forma de cálculo da indemnização a atribuir nestes casos e o que se prevê é que - verificados todos os pressupostos enunciados na cláusula em questão, “ a SEGURADORA pagará a parte do correspondente capital determinado pela Tabela de Desvalorizações anexa a estas Condições Gerais”, no caso concreto a indemnização limita-se a 2 % x 75.000,00€ = 1.500,00€.

6. O seguro de acidentes pessoais em causa nos autos, não é um seguro de responsabilidade civil geral, é um seguro de coberturas bem definidas, com critérios e pressupostos claramente estabelecidos. Não está em causa um contrato de seguro de responsabilidade civil, seja ele automóvel, habitação, multirriscos, comércio… Trata-se de seguros completamente distintos e cujo regime jurídico não deve nem pode ser confundido.

7. A interpretação do contrato de seguro que é feita na douta sentença ora recorrida extravasa, completamente, o âmbito do contrato de seguro em causa e das coberturas nele contidas, não tendo no texto do contrato de seguro qualquer correspondência, pelo que é uma interpretação abusivamente extensiva e contrária à índole do contrato em causa.

8. Por outro lado, e mesmo no âmbito dos seguros de responsabilidade civil, a seguradora paga indemnizações por danos patrimoniais ou não patrimoniais desde que se demonstre e prove que o seu segurado cometeu por acção ou omissão um qualquer facto ilícito, nos termos do art. 483º e seguintes do CC.

9. Da matéria de facto dada como provada não decorre que a segurada da ora recorrente, a Santa Casa da Misericórdia, tenha cometido por acção ou omissão qualquer facto ilícito gerador de responsabilidade civil. O sinistro que vitimou a A. foi um acidente fortuito, sem causa externa que não tenha sido a própria acção da A.

10. Assim que, e ainda que se esqueçam as limitações e coberturas do contrato de seguro em causa e se queira fazer uma interpretação supra extensiva ao mesmo, jamais poderia a ora recorrente ser condenada a pagar qualquer indemnização que não aquela que contratualmente seja definida, por ausência de responsabilidade civil da ora recorrente e da sua segurada.

11. A questão do pagamento de danos não patrimoniais não está prevista nas exclusões da apólice porque a índole do contrato de seguro de acidentes pessoais não tem uma natureza indemnizatória como têm os contratos de seguro de responsabilidade civil.

12. Este contrato de seguro tem similitude, se bem que com muitas limitações, aos contratos de seguros de acidentes de trabalho, nos quais também não se paga qualquer indemnização por danos morais. E também no contrato de seguro de acidentes de trabalho as condições gerais não referem expressamente a exclusão dos danos não patrimoniais.

13. O acidente que ocorreu nos autos, mal comparado, foi um vulgar acidente de trabalho, no entanto e face às condições da contratação da A. pela Santa Casa da Misericórdia o que lei impõe a segurada da ora recorrente é apenas a contratação do seguro de acidentes pessoais, demonstrado nos autos.

14. Pelo que fica exposto entende a ora recorrente que ao contrato de seguro de acidentes pessoais analisado nos autos não tem cabimento a condenação por danos não patrimoniais.

A recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

1 – O tribunal a quo procedeu a uma análise crítica das provas, fruto da imediação e convicção, a par da demais prova constante dos autos, e bem andou quanto à subsunção dos factos ao direito e à interpretação da referida apólice de seguro de acidentes pessoais quanto aos danos de natureza não patrimonial.

2 – A douta sentença recorrida estribou-se – para apurar e determinar a responsabilidade da ré quanto aos danos de natureza não patrimonial - no princípio in dubio contra stipulationis, com afirmado suporte nos Acs.TRC, datados de 08.09.2009 e 23.01.2018; o que de igual modo refulge no ponto IV do douto Ac.TRC, datado de 12.11.2015.

3 – A douta sentença recorrida deverá ser confirmada e mantida, porquanto não se antolham razões de direito ou de facto que possam desvirtuar o doutamente decidido na 1.ª instância.

O recurso foi admitido.

Objecto do recurso

A única questão a resolver consiste em saber se o contrato de seguro dos autos cobre danos não patrimoniais.

Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Em 14 de Junho de 2010, entre Santa Casa da Misericórdia de (…) e a autora, foi celebrado um contrato, no âmbito das Medidas Emprego-Inserção+, no âmbito do qual a primeira se obrigou a proporcionar à segunda, que aceitou, a execução de trabalho socialmente necessário, na área de apoio a idosos.

2. A prestação de trabalho socialmente necessário teria lugar no Lar de (…) – Santa Casa Misericórdia de (…) e realizar-se-ia de acordo com o horário que legal e convencionalmente estava em vigor para o sector de actividade onde se insere o projecto da medida contrato emprego-inserção + e conforme acordado entre as partes, ou seja, das 9h às 18h.

3. A autora tinha direito a receber da Santa Casa da Misericórdia de (…), para além do mais, uma bolsa de ocupação mensal de montante igual ao valor do indexante dos apoios sociais e um seguro contra acidentes pessoais que cobrisse os riscos que pudessem ocorrer durante e por causa do exercício das actividades integradas no projecto de trabalho socialmente necessário.

4. Através da apólice n.º 15/96466, a responsabilidade civil para acidentes pessoais que cobrisse os riscos que pudessem ocorrer durante e por causa do exercício das actividades integradas no projecto socialmente necessário foi transferida para a ré.

5. Das condições gerais e especiais da apólice referida em 4 constam os seguintes dizeres: “Nos termos e limites definidos nas Condições Especiais, se as houver, e Particulares da apólice, o contrato garante, em caso de acidente consoante as coberturas contratadas, o pagamento das indemnizações ou prestações devidas por: 1.1 Morte. 1.2. Invalidez Permanente. 1.3. Morte ou Invalidez Permanente. 1.4. Incapacidade Temporária. 1.5. Incapacidade Temporária Absoluta em caso de Internamento Hospitalar. 1.6. Despesas de Tratamento e Repatriamento. 1.7. Despesas de Funeral. (…) 2. INVALIDEZ PERMANENTE 2.1 Entende se por Invalidez Permanente a perda anatómica ou impotência funcional de membros ou órgãos que, em consequência de lesões corporais resultantes de acidente coberto pela apólice, se encontra especificada na Tabela de Desvalorizações anexa a estas Condições Gerais, que faz parte integrante da apólice. 2.2. O capital seguro por Invalidez Permanente só é devido se a mesma for clinicamente constatada no decurso de dois anos a contar da data do acidente. 2.3. Verificados os pressupostos enunciados em 2.1. e 2.2., a SEGURADORA pagará a parte do correspondente capital determinando pela Tabela de Desvalorizações anexa a estas Condições Gerais. (…) 4. INCAPACIDADE TEMPORÁRIA 4.1 Define se como Incapacidade Temporária a impossibilidade física e temporária, susceptível de constatação médica objectiva, de o Segurado/Pessoa Segura exercer a sua actividade norma. Esta incapacidade considera se dividida em dois graus: a) 1.º grau – Incapacidade Temporária Absoluta enquanto o Segurado/Pessoa Segura, que exerça profissão remunerada, se encontre na completa impossibilidade física, clinicamente comprovada, de atender ao seu trabalho, ainda que seja o de instruir, dirigir ou coordenar os seus subordinados (…) 4.2 O subsídio diário por Incapacidade Temporária só é devido se a incapacidade for clinicamente e objectivamente comprovada nos termos desta apólice e constatada no decurso de 180 (cento e oitenta) dias subsequentes à data do acidente. 4.3. Nas situações de Incapacidade Temporária Absoluta (1.º grau), sobrevinda no decorrer de 180 (cento e oitenta) dias contados da data do acidente, a SEGURADORA pagará, durante o período máximo de 180 (cento e oitenta) dias, a indemnização diária fixada nas Condições Particulares. Esta indemnização é devida a partir do dia imediato ao da assistência clínica e processar-se-á na data da alta clínica, salvo se outra disposição vier a ser estabelecida nas Condições Particulares da apólice. (…) 6. DESPESAS DE TRATAMENTO E REPATRIAMENTO 6.1. Por Despesas de Tratamento entendem se as relativas a honorários médicos e internamento hospitalar, incluindo assistência medicamentosa e de enfermagem, bem como de exames auxiliares de diagnóstico e de fisioterapia que forem necessárias em consequência do acidente. (…) 6.3. A SEGURADORA procederá ao reembolso, até à importância para o efeito fixada nas Condições Particulares, das despesas necessárias para o tratamento das lesões sofridas, bem como das despesas extraordinárias de repatriamento (…)”.

6. Das condições particulares da apólice constam os seguintes dizeres: “(…) COBERTURA(S) MORTE OU INVALIDEZ PERMANENTE 75.000,00 € INCAPACIDADE TEMPORÁRIA – ABSOLUTA/PARCIAL € 20,00 diários DESPESAS TRATAMENTO E REPATRIAMENTO 15.000,00 € (…)”.

7. No dia 27 de Setembro de 2010, cerca das 14h15m, quando se encontrava a desempenhar as suas funções nas instalações do Lar de (…), sito em (…), a autora encontrava-se debruçada sobre a banheira poliban a lavar, tendo pegado com a mão esquerda num bidão de 20 litros, cheio de detergente, e enquanto vazava este para a banheira, a sua mão esquerda escorregou da pega, caindo então o bidão, tendo ela procurado agarrar o mesmo com a mão direita por baixo, mas não conseguiu, tendo ficado com a mão direita entalada entre o bidão e a borda do poliban.

8. Na sequência do descrito em 7., a autora deu um grito e ficou com dores na mão.

9. Por se encontrar dentro do seu horário de trabalho e temer que a sua ausência colocasse em crise o seu emprego, e por julgar que as dores passariam, a autora aguentou e permaneceu no seu local de trabalho.

10. Por não mais conseguir aguentar as dores, no dia 27 de Setembro de 2010, foi assistida no Hospital Distrital de Santarém, pelas 23h30, onde foi medicada.

11. Na sequência do referido em 7., a autora ficou com traumatismo do punho direito, com fractura, tendo sido imobilizada com tala.

12. Após observação da autora, no dia 28 de Setembro de 2010, os serviços clínicos da ré determinaram-lhe uma incapacidade temporária absoluta de 15 dias, tendo em 13 de Outubro de 2010 determinado uma incapacidade temporária absoluta de 30 dias.

13. No dia 26 de Outubro de 2010, a autora foi suspensa pela Santa Casa da Misericórdia de (…).

14. Em 16 de Dezembro de 2010, a autora apresentava um diagnóstico de “(…) imagem linear de hipersinal nesta topografia a traduzir fenómenos de rotura desta fibro-cartilagem. São alterações que se associam a edema importante dos tecidos moles peri-cartilagíneos, associando-se a fenómenos de provável tenossinovite do extensor cubital à passagem nesta topografia.(…)”.

15. Em 4 de Fevereiro de 2011, a autora apresentava um diagnóstico de “(…) tenossinovite estenosante de Quervain (dtª), carecendo de tratamento cirúrgico descompressão poleia (…)”.

16. Em 11 de Novembro de 2011, a autora apresentada o seguinte diagnóstico: “(…) traumatismo com evolução de 5 meses. Usa tala antiálgica. As queixas da doente têm relação com tenossinovite estenosante, dor no longo abdutor e curto extensor do polegar (Doença de Quervain), responsável pela dificuldade de mobilização do punho, bem como da paratesia do osso do polegar. (…)”.

17. Após a data do acidente, a Santa Casa da Misericórdia de Almeirim deixou de lhe pagar qualquer quantia, relativa ao tempo de serviço posterior ao acidente.

18. O Instituto da Segurança Social, I.P. pagou à autora a quantia de € 39,92 a título de rendimento social de inserção desde do mês de Dezembro de 2010 até Janeiro de 2011.

19. A autora reclamou junto do Instituto da Segurança Social, I.P., sendo que aquele informou a autora, em 8 de Fevereiro de 2011, que: “(…) a prestação de RSI, sofreu alteração após reanálise do processo. Deste modo o novo montante de prestação de RSI será de € 473,80. (…)”.

20. Em 11 de Março de 2011, a ré remeteu uma carta à autora com o seguinte teor: “(…) Na sequência da participação de acidente, verificou-se, após análise da informação existente no processo, nomeadamente relatório clínico, que as lesões apresentadas, não são atribuíveis ao acidente participado, pelo que deverá dirigir ao S/ Médico de Família. Nesta conformidade, informamos que não podemos assumir a responsabilidade no sinistro pelo que vamos encerrar o respectivo processo. (…)”.

21. Em consequência do descrito em 7., a autora ficou uma incapacidade parcial permanente fixável em 2 pontos.

22. A autora sofreu e sofre dores, tendo sido fixado o quantum doloris no grau de 3/7.

23. A autora ficou amargurada e triste pelo facto de não poder utilizar a mão direita, inclusive por ser dextra.

24. A autora teve que recorrer à ajuda de terceiros para desempenhar determinadas tarefas, durante cerca de dois anos e seis meses.

25. A lesão sofrida pela autora limitou-a na prática desportiva/lúdica e vedou-lhe a prática da condução.

26. A autora esteve dois anos e seis meses sem poder mexer a mão direita, que se encontrava amparada por uma tala antiálgica.

27. A autora perdeu a força na mão, punho e braço direito e mal consegue escrever, e quando consegue é por curtos períodos.

28. A autora não pode carregar ou levantar sacos ou pesos.

29. A autora não consegue utilizar uma tesoura.

30. A autora não consegue lavar loiça à mão.

31. A autora não consegue lavar a roupa.

32. A autora não consegue levantar um copo de água.

33. A autora passou a comer exclusivamente com a mão esquerda.

34. A autora não consegue nem pode apoiar-se na mão direita.

35. As tarefas que a autora realizava com a mão direita passaram a ser realizadas com a mão esquerda.

36. A data de consolidação é fixável em 02/02/2011.

Fundamentação

Está em causa saber se o contrato de seguro dos autos cobre os danos não patrimoniais sofridos pela recorrida em consequência do sinistro.

Os argumentos expendidos na sentença recorrida para concluir que o seguro cobre danos não patrimoniais são, em síntese, os seguintes:

A) Estão incluídas nas coberturas as indemnizações devidas por morte e invalidez permanente e nem as condições gerais do seguro, nomeadamente a sua cláusula 5.ª, nem a tabela de desvalorizações anexa ao contrato, nem as condições particulares, excluem os danos não patrimoniais resultantes daqueles eventos;

B) Seja como for, em caso de dúvida, o contrato de seguro deve ser interpretado contra a parte que o redigiu e enunciou as respectivas cláusulas, mormente cláusulas contratuais gerais, valendo o princípio in dubio contra stipulatorum.

A isto, a recorrente opõe, em síntese, que:

A) O seguro dos autos estabelece coberturas bem específicas e delimitadas, nomeadamente a cobertura de morte ou invalidez permanente, com um limite de € 75.000;

B) As suas condições gerais definem claramente a forma de cálculo da indemnização, prevendo que a seguradora pagará a parte do correspondente capital determinado pela tabela de desvalorizações anexa;

C) O seguro dos autos é de acidentes pessoais, com coberturas bem definidas e critérios e pressupostos claramente estabelecidos, e não um seguro de responsabilidade civil geral;

D) Mesmo no âmbito dos seguros de responsabilidade civil, a seguradora só paga indemnizações por danos patrimoniais ou não patrimoniais desde que se prove que o segurado cometeu, por acção ou omissão, um facto ilícito, nos termos dos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, sendo certo que este pressuposto não se verificou no caso dos autos;

E) A questão do pagamento de danos não patrimoniais não está prevista nas exclusões da apólice porque a índole do contrato de seguro de acidentes pessoais não tem uma natureza indemnizatória como têm os contratos de seguro de responsabilidade civil;

F) O seguro dos autos tem alguma similitude com o seguro de acidentes de trabalho, no qual também não se paga qualquer indemnização por danos não patrimoniais apesar de, também neste, as condições gerais não excluírem expressamente os danos não patrimoniais;

G) A interpretação do contrato de seguro feita na sentença recorrida não tem qualquer correspondência no texto da apólice e é contrária à índole do mesmo contrato.

Analisemos o problema.

Tenha-se em mente, em primeiro lugar, que estamos perante um seguro obrigatório, por via do disposto no artigo 14.º, n.º 2, da Portaria n.º 128/2009, de 30.01. Nos termos desta norma, “a entidade promotora deve efectuar um seguro que cubra os riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das actividades integradas num projecto de trabalho socialmente necessário”, sem qualquer restrição. Nomeadamente, não se exclui a cobertura dos danos não patrimoniais. A referida norma de enquadramento constitui um elemento cuja relevância para a interpretação dos concretos contratos de seguro celebrados em sua execução é evidente.

Tenha-se em conta, em segundo lugar, a aplicabilidade subsidiária da lei civil, nos termos do artigo 4.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16.04 (ao qual pertencem todas as normas adiante referenciadas sem indicação da sua proveniência). Mais, nas matérias que o legislador entendeu não requererem uma regulação especial através do Direito dos Seguros e em que, portanto, não há uma lacuna deste último, a aplicação do Direito Civil, como Direito comum que é, é directa e não subsidiária[1]. Uma das consequências desta omnipresença do Direito Civil no domínio do Direito dos Seguros é a de este último acolher “a noção geral de dano, tal como nos advém do Direito das Obrigações: sem prejuízo de, em diversas conjunturas, proceder a adaptações (…) O Direito dos Seguros parte (…) da noção civilística de dano”[2]. Ou seja, também aqui, o princípio é o da reparabilidade do dano não patrimonial que, pela sua gravidade, mereça a tutela do Direito [artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil]. Mesmo nos seguros de danos, tal reparabilidade, em alguma medida, não é de afastar[3]. Por evidente maioria de razão, a reparabilidade do dano não patrimonial terá, em princípio, lugar nos seguros de pessoas, em que se lida “com valores humanos de natureza não-patrimonial”[4].

Realce-se, em terceiro lugar, que as exclusões da cobertura do seguro constituem matéria sensível. Assim se justificam as exigências que, neste domínio, são estabelecidas quanto aos deveres de informação do segurador [artigos 18.º, al. c), 21.º, n.ºs 1 e 5, e 22.º, n.º 2,] e ao texto da apólice [artigo 37.º, n.º 3, al. b)]. Nomeadamente, as exclusões da cobertura têm de constar da apólice de forma expressa e, mais do que isso, em caracteres destacados e de maior dimensão do que os restantes, o que constitui uma exigência invulgar. Ou seja, a lei impõe uma absoluta e ostensiva clareza do contrato em matéria de exclusões da cobertura do seguro.

Em quarto lugar, deve ter-se presente que as cláusulas gerais dos seguros constituem cláusulas contratuais gerais pré-elaboradas pelo segurador, o qual é, por via de regra quase sem excepções, a parte mais forte em todos os domínios, nomeadamente no da disponibilidade de recursos técnico-jurídicos[5]. Um contrato de seguro é constituído por um conjunto de cláusulas, pré-elaboradas pelo segurador e que reveste, sempre, uma complexidade técnico-jurídica cuja inteira compreensão não está ao alcance da generalidade dos tomadores e dos segurados. Neste campo, por ter sido o autor das “suas” cláusulas e pelos recursos técnico-jurídicos de que dispõe para com base nelas se mover, é, ao menos em regra, esmagadora a superioridade do segurador. Por ser assim, é geralmente reconhecido, em matéria de interpretação do contrato de seguro, o princípio in dubio contra stipulatorum, acertadamente referido na sentença recorrida. Em caso de dúvida, o contrato de seguro deve ser interpretado contra a parte que redigiu as suas cláusulas[6].

Assentes estas ideias, regressemos ao caso sub judice. Como bem se salienta na sentença recorrida, nem as condições gerais do contrato de seguro dos autos, nomeadamente a sua cláusula 5.ª, nem a tabela de desvalorizações a ele anexa, nem as condições particulares, excluem a indemnização dos danos não patrimoniais resultantes do sinistro. Sendo assim, toda a argumentação por nós expendida aponta no sentido de que estes danos se encontram incluídos no âmbito da cobertura do seguro.

Confrontemos esta conclusão provisória com a argumentação desenvolvida pela recorrente.

A afirmação de que o seguro dos autos estabelece coberturas bem específicas e delimitadas, nomeadamente a cobertura de morte ou invalidez permanente, com um limite de € 75.000, nada adianta para a resolução do problema que nos ocupa. Está provado que a recorrida ficou uma incapacidade parcial permanente fixável em 2 pontos, pelo que não está em causa a verificação de um evento abrangido pela cobertura do seguro. Em discussão está unicamente se, além do ressarcimento dos danos patrimoniais, a recorrente também está obrigada a pagar à recorrida uma quantia para reparação dos danos não patrimoniais, o que constitui questão distinta.

A fórmula de cálculo da indemnização pelos danos patrimoniais resultantes da invalidez permanente que se encontra fixada no contrato, mediante remissão para a tabela de desvalorizações anexa, não exclui o pagamento de uma quantia para compensação dos danos não patrimoniais. Recordemos, nomeadamente, aquilo que acima afirmámos acerca das exigências de clareza na fixação das exclusões da cobertura do seguro.

O facto de o contrato de seguro dos autos ser de acidentes pessoais e não de responsabilidade civil geral também não exclui a reparabilidade dos danos não patrimoniais. Esta última não constitui um exclusivo do seguro de responsabilidade civil, sendo admissível num seguro de pessoas, nomeadamente de acidentes pessoais, como resulta da exposição anterior.

O argumento referido em D), além de já ter ficado refutado através da demonstração de que a reparabilidade dos danos não patrimoniais não constitui um exclusivo do seguro de responsabilidade civil, labora num erro evidente. No seguro de responsabilidade civil, o segurador pode obrigar-se a indemnizar danos, patrimoniais e não patrimoniais, não só nas hipóteses de responsabilidade por facto ilícito, mas também nas de responsabilidade pelo risco, como decorre do artigo 138.º, n.º 2, conjugado com o artigo 499.º do Código Civil.

O argumento referido em E) já está refutado. Vimos anteriormente que a natureza do contrato de seguro de acidentes pessoais não exclui a possibilidade de o segurador indemnizar[7] danos não patrimoniais.

Quanto ao argumento referido em F), a questão suscitada pela recorrente tem na sua origem a própria Lei dos Acidentes de Trabalho [Lei n.º 98/2009, de 04.09], a qual, salvo nas hipóteses previstas no n.º 1 artigo 18.º, exclui a reparação dos danos não patrimoniais, como resulta dos artigos 23.º e 47.º e seguintes. Dada esta especificidade do regime legal dos acidentes de trabalho (questão logicamente prévia à do contrato de seguro que tenha estes últimos por objecto), fica afastado qualquer argumento de analogia com o seguro de acidentes pessoais.

Concluímos, assim, à semelhança do tribunal a quo, que, dada a inexistência de cláusula expressa de exclusão dos danos não patrimoniais do âmbito da cobertura do contrato de seguro dos autos, a recorrente, na qualidade de seguradora, está obrigada a indemnizar a recorrida também a esse título. O recurso deverá, pois, ser julgado improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Decisão

Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Notifique.

*

Évora, 12 de Junho de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta



[1] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito dos Seguros, 2.ª edição (revista e actualizada), p. 486-487.

[2] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, cit., p. 793 e 795.

[3] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, cit., p. 795-796.

[4] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, cit., p. 839.

[5] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, cit., p. 641-646.

[6] Neste sentido, acórdãos da Relação de Coimbra de 08.09.2009 (proc. 165/06.8TBGVA.C1; relator: TELES PEREIRA) e de 23.01.2018 (proc. 4285/15.0T8CBR.C1; relator: VÍTOR AMARAL), citados na sentença recorrida.

[7] Não existe óbice à utilização deste termo para designar o pagamento devido pelo segurador ao segurado – ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, cit., p. 754.

Acórdão da Relação de Évora de 11.01.2024

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