Processo n.º 878/18.1T8OLH.E1
*
Sumário:
1
– O não decretamento da providência cautelar solicitada mediante decisão
proferida depois de os
requeridos terem apresentado a sua oposição não pode ser qualificado como um
indeferimento liminar do requerimento inicial.
2 – Apesar da sua incorrecta
qualificação, pelo tribunal, como indeferimento liminar, a decisão referida em
1 era admissível, sem a prévia realização de audiência de produção de prova
caso esta se mostrasse desnecessária, nos termos do artigo 367.º, n.º 1, do
Código de Processo Civil.
3 – Os accionistas de uma sociedade
anónima não podem ser excluídos desta por via da aplicação do artigo 242.º do
Código das Sociedades Comerciais por analogia.
*
Sociedade
1, S.A., instaurou procedimento cautelar comum contra AAA, BBB e CCC, pedindo
que seja decretada a suspensão da qualidade de accionista destes últimos. Como
fundamento, a requerente alegou factos, alegadamente praticados pelos
requeridos, que, no seu entendimento, constituem fundamento de exclusão – a
qual constitui a finalidade da acção principal – dos mesmos da sociedade por
via da aplicação analógica do artigo 242.º do Código das Sociedades Comerciais ou,
se assim se não entender, da aplicação subsidiária do artigo 1003.º, al. a), do
Código Civil.
Foi
dado o contraditório aos requeridos, os quais, no seu exercício, sustentaram, nomeadamente,
que não é legalmente admissível a exclusão de accionistas de uma sociedade
anónima e, ainda que assim se não entendesse, não praticaram qualquer facto que
justificasse tal exclusão. Daí, segundo os requeridos, a inexistência de
fundamento para o decretamento da providência cautelar solicitada.
Após
algumas vicissitudes processuais sem relevância para a decisão do presente
recurso, o tribunal a quo indeferiu
“liminarmente” a providência cautelar requerida.
A
requerente interpôs recurso de apelação desta decisão, tendo formulado as
seguintes conclusões:
1. O
presente recurso vem interposto da douta sentença proferida nos autos a 17.06.2022
que, nos termos e para efeitos do estabelecido nos artigos 362.º e 590.º, n.º 1,
do Código de Processo Civil, indeferiu liminarmente o procedimento cautelar
requerido.
2. Da
douta sentença proferida consta o seguinte: «Assim
sendo, mostrando-se o pedido manifestamente improcedente determina o artigo 590.º,
n.º 1, do Código de Processo Civil, que tal vício conduz ao indeferimento
liminar do requerimento inicial. Em face do exposto, de harmonia com o disposto
no artigo 362.º e 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indefere-se
liminarmente o procedimento cautelar requerido.».
3.
Ora, a recorrente não pode conformar-se com a sentença proferida, designadamente
com o indeferimento liminar do procedimento cautelar, na medida em que nesta
fase processual já se encontra ultrapassada a fase de prolação do despacho
liminar.
4. Na
verdade, a requerente peticionou que a providência cautelar fosse decretada sem
a audiência prévia dos requeridos/recorridos.
5.
Acontece que, não obstante, a 02.07.2018, foi proferido despacho liminar através
do qual o tribunal recorrido determinou a citação daqueles.
6. A
presente sentença foi, assim, proferida já após a efectiva e regular citação
dos requeridos e da apresentação, pelos mesmos, de oposição.
7.
Ora, o despacho de indeferimento liminar apenas e só pode ser proferido aquando
da análise liminar do processo pelo juiz titular do mesmo, após a entrada em
juízo do requerido de início de processo, nos termos preceituados no artigo
590.º, n.º 1 do CPC, em conjugação com o artigo 226.º, n.º 4, alínea b), do
mesmo diploma.
8.
Pelo que, o tribunal recorrido ao indeferir liminarmente o procedimento
cautelar no momento em que indeferiu, isto é, após a regular e efectiva citação
dos requeridos e a apresentação de oposição por estes, violou, de forma
manifesta e grosseira, as normas processuais vigentes.
9.
Assim, salvo o devido respeito, o tribunal a
quo deveria sim ter procedido à marcação da audiência final para produção
da prova requerida e posterior prolação da decisão, nos termos e para efeitos
conjugados do estabelecido nos artigos 152.º, 367.º e 368.º do Código de
Processo Civil.
10. Isto
posto, encontra-se a sentença recorrida inelutavelmente inquinada, devendo a
mesma ser integralmente revogada e, consequentemente, ser ordenada a baixa dos
autos ao tribunal de 1.ª instância, determinando-se o prosseguimento do
procedimento cautelar, com a necessária marcação e realização da audiência
final.
Sem
prejuízo do supra exposto e por mera cautela do patrocínio:
11.
Sempre se diga que na sentença proferida o tribunal a quo levou a cabo uma errónea interpretação (e consequente
aplicação) do direito aplicável ao caso em apreço.
12. O tribunal
recorrido entendeu ser inaplicável, por analogia, ao caso em apreço, o artigo
242.º do CSC, relativo ao regime de exclusão de sócios, tanto em razão da não
previsão de tal figura relativamente às sociedades anónimas como em razão de
não se encontrar preceituado no art.º 384.º, n.º 6, do CSC, a proibição do accionista
votar nas deliberações a respeito de uma eventual exclusão sua.
13.
Acontece que, não assiste qualquer razão ao tribunal a quo.
14.
Isto porque, desde logo, faz assentar a sua decisão, em traços gerais, numa
corrente doutrinária manifestamente minoritária, atendendo ao defendido quer no
plano nacional quer nos sistemas que, a maioria das vezes, nos servem de
referência.
15. Na
verdade, o tribunal recorrido transcreve uma tese de mestrado, datada de 2017,
para alicerçar a sua decisão.
16.
Sendo que, em momento algum, lhe poderá ser dado o relevo e legitimidade como
meio de suporte doutrinário e legal que o tribunal a quo procura lhe conferir.
17. Em
primeiro lugar porque a própria conclusão vertida na suprarreferida dissertação
de mestrado diverge da posição que o douto tribunal recorrido tenta –
erradamente – fazer vingar, na medida em que da mesma resulta – e bem – que
sempre será de admitir o direito de exclusão de um sócio às sociedades anónimas
quando estas revelam um cunho marcadamente personalista – como é o caso da recorrente!
18. Em
segundo lugar porque a este propósito, isto é, com entendimento contrário ao
sentido decisório da sentença recorrida – suportada na tese de mestrado
suprarreferida –, concluiu já o Senhor Professor Doutor COUTINHO DE ABREU no
parecer jurídico junto pela recorrente aos autos fls. com a ref.ª n.º 29607114
e o qual, novamente e por facilidade, adiante se junta e aqui se dá por
integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos sob doc. n.º 1,
o seguinte:
«1.ª - Sempre que estejamos perante uma
sociedade anónima "fechada" e de cunho marcadamente personalista, na
qual assume maior protagonismo a pessoa do sócio e onde facilmente se concebe o
potencial relevo excludente de factos relativos à sua situação ou
comportamento, torna-se perfeitamente justificada a aplicação, por analogia, do
artigo 242.º do CSC.
2.ª - Somando as características
estruturais (as acções são nominativas, e a sua transmissão encontra-se
estatutariamente sujeita a direito de preferência dos outros sócios ou ao
consentimento da própria sociedade) à teia de relações familiares e
envolvimento na vida societária, fica cabalmente demonstrado que a Sociedade 1,
S.A. é uma daquelas sociedades anónimas que, em concreto, evidenciam os traços
necessários e suficientes à sua caracterização como sociedade
"fechada" e de cunho marcadamente personalista, justificando-se assim
a aplicação analógica do artigo 242.º do CSC aos conflitos que venham a eclodir
em virtude do comportamento dos seus accionistas.».
19.
Sendo que COUTINHO DE ABREU sustentou, ainda, tal entendimento, nos seguintes
termos:
«E não custa admitir a aplicação, por analogia,
e com as necessárias adaptações, do artigo 242.º (directamente aplicável às
sociedades por quotas) – exclusão judicial de accionista que, “com o seu
comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade,
lhe tenha causado ou possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes.»
20.
Pelo que, quando concluiu que «nas
sociedades anónimas não pode ser deliberado em assembleia ou decidido em acção
judicial, a exclusão de accionista da sociedade, muito menos quando os
estatutos da sociedade não preveem tal exclusão e, sendo assim, por maioria de
razão inexiste fundamento para o procedimento cautelar em que se pede a
suspensão da qualidade de accionista, antecipatória da acção judicial para
exclusão de accionista.», a sentença recorrida contraria não só a corrente
doutrinária maioritária como a posição maioritária jurisprudencial adoptada
entre nós.
21.
Nesta senda, em momento algum poderão colher os argumentos que sustentam a
decisão, tais como a impraticabilidade da aplicação de exclusão quando as acções
são ao portador como a fácil e livre transmissão (e reaquisição) das
participações sociais pelos sócios.
22. Em
primeiro lugar porque encontra-se eliminada do nosso ordenamento jurídico a
figura das acções ao portador, em razão das alterações legislativas
introduzidas em 2017, padecendo, assim, tal fundamento de toda e qualquer
aplicabilidade útil.
23. Em
segundo lugar porque, relativamente às acções nominativas – como as em apreço –,
é perfeitamente possível tanto controlar e conhecer qualquer tentativa de
reingresso na sociedade do sócio expulso como estipular, no pacto social, quer
limitações quanto à transmissão de acções quer um direito de preferência dos
outros accionistas e as condições do respectivo exercício, no caso de alienação
de acções, nos termos artigo 328.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CSC.
24.
Também não deverá ser conferida qualquer legitimidade ao argumento alegado pelo
tribunal a quo da incompatibilidade
do tipo societário da sociedade anónima (no seu todo) com a aplicação analógica
do artigo 242.º do CSC.
25. A
respeito cumpre atentar ao defendido pelo Exmo. Senhor Professor Doutor JOSÉ
FERREIRA GOMES no parecer jurídico que adiante se junta e aqui se dá por
integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos sob doc. n.º 2,
donde se lê o seguinte:
«I. O argumento da objectivação da
participação social confunde planos que são distintos entre si. A perspectiva
de que os direitos e deveres dos accionistas estão “incorporados” nas acções,
enquanto valores imobiliários, traduz uma técnica legislativa destinada a
facilitar a transmissão e a legitimação dos seus titulares para o exercício
dessas posições jurídicas.
Este plano de participação como objecto de
posições jurídicas e de negócios jurídicos não se confunde com aqueloutro da
participação como relação jurídica entre o accionista e a sociedade e,
eventualmente, entre os diferentes accionistas.».
26. Mais acrescentando JOSÉ FERREIRA GOMES que:
«I. A perspectiva de que a escolha do tipo
sociedade na anónima envolve a adesão a uma distribuição de risco
pré-determinada que afasta a exclusão do accionista infiel não tem fundamento.
É uma perspetiva formalista, incompatível
com uma realização do direito problematizante e sistematicamente ordenada a
valores.
(...)
Nos primórdios, o direito das sociedades
anónimas não reconhecia o dever de lealdade dos accionistas e, por maioria de
razão, não podia reconhecer a exclusão destes por deslealdade.
(...)
Perante uma sociedade com dois sócios, no
qual é patente um intuitu personae, a solução do caso não pode ser condicionada
pelo disposto no artigo 347.º/3 CSC. Este cede por restrição teleológica,
abrindo espaço à aplicação das coordenadas gerais do direito comum. O recurso
ao artigo 242.º/1 CSC, por analogia, limita-se à determinação dos exactos
termos em que aquelas coordenadas aqui operam.».
Isto
posto,
27. A
sociedade comercial anónima é o paradigma das sociedades de capitais e, com
efeito, assenta principalmente nas contribuições patrimoniais dos sócios, pouco
relevando a individualidade dos sócios e a sua participação pessoal na vida
social.
28.
Por seu turno, o direito de exclusão de sócio da sociedade comercial constitui
uma causa de perda da qualidade de sócio, surgindo como um direito potestativo
concedido à sociedade de afastar um sócio que impossibilite ou dificulte a
prossecução do fim social daquela, com fundamento na lei ou em cláusula estatutária.
29.
Sendo que os factos legais e/ou estatutariamente previstos como fundamento da
exclusão de um sócio, prendem-se com um dado comportamento ou uma determinada
situação pessoal do sócio, que tornou inexigível aos restantes sócios
suportarem a permanência daquele na sociedade.
30.
Ora, sendo certo que se encontra subjacente ao direito de exclusão de sócio um intuitu personae, numa primeira e
superficial interpretação – e talqualmente entendeu o tribunal a quo – seria de concluir que a não previsão
de uma igual figura quanto às sociedades anónimas resulta de uma opção
intencional do legislador no sentido de afastar toda e qualquer possibilidade
de exclusão de accionistas daquelas.
31.
Ora, salvo melhor opinião e, sempre, com o respeito que é devido, o tribunal a quo incorre, precisamente, em erro de
interpretação e aplicação das normas jurídicas ao entender que não há lugar, no
caso sub judice, à aplicação
analógica do artigo 242.º do CSC.
32.
Isto porque a não estipulação de um regime de exclusão de accionistas quanto às
sociedades anónimas é explicado pelo paradigma de sociedade anónima oitocentista.
33.
Porquanto, com o intuito de conferir uma especial protecção aos accionistas minoritários,
optou-se pela consagração de um regime legal pautado por uma maior
inflexibilidade e rigidez.
34.
Tendo, nessa senda, sido estabelecido que os casos que imponham ou permitam a
amortização (e consequente extinção) das acções têm que constar concreta e
expressamente no pacto social – cfr. artigo 347.º, n.º 3, do CSC.
35.
Sucede que, atendendo aos circunstancialismos próprios e inerentes à situação sub judice, sempre se terá que concluir
que falham, manifesta e grosseiramente, os pressupostos que fundamentam as
soluções (rígidas e inflexíveis) então adoptadas, bem como que não se
descortina o bem jurídico que a referida rigidez visa acautelar.
36.
Conforme referido pelo Exmo. Senhor Professor Doutor COUTINHO DE ABREU, adiante
junto sob doc. n.º 1:
«as concretas e singulares sociedades não
têm de corresponder ponto por ponto ao paradigma do tipo a que abstratamente se
subsumem, porque as alternativas abertas pelas normas legais dispositivas (cfr.
o art. 9.º, 3 do CSC) permitem não só a introdução de características personalísticas
em sociedades tipicamente capitais, como são as anónimas, mas também a concreta
conformação dessas sociedades, não obstante o seu tipo legal, como verdadeiras
sociedades de pessoas.».
37.
Falamos, assim, do denominado fenómeno de «miscigenação dos tipos societários»
ou «matização personalística do cunho capitalístico».
38.
Ora, cumpre atentarmos às características formais e estruturais da recorrente,
talqualmente estabelecidas, em comum e unânime acordo entre todos os accionistas,
no pacto social, nomeadamente:
a. O
capital social da requerente é, actualmente, de € 300.000,00 (trezentos mil
euros), dividido em 120.000 (cento e vinte mil) acções nominativas, com o valor
nominal de € 2,50 (dois euros e cinquenta cêntimos) cada, pelos seguintes accionistas:
- Sociedade
2, SGPS, S.A., titular de 60.000 (sessenta mil) acções nominativas, que
corresponde a 50% do capital social de € 300.000,00 da recorrente;
- AAA,
aqui recorrida, titular de 20.000 (vinte mil) acções nominativas, que
corresponde a 16,66% do capital social de € 300.000,00 da recorrente;
- BBB,
aqui recorrida, titular de 20.000 (vinte mil) acções nominativas, que corresponde
a 16,66% do capital social de € 300.000,00 da recorrente;
- CCC,
aqui recorrido, titular de 20.000 (vinte mil) acções nominativas, que corresponde
a 16,66% do capital social de € 300.000,00 da recorrente;
- O
capital social da recorrente é, assim, detido por 4 (quatro) distintos accionistas.
b. O
capital da recorrente não se encontra aberto ao investimento público.
c.
Todas as acções representativas do capital social da recorrente são
nominativas, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do pacto social.
d. O
artigo 8.º do pacto social estabelece restrições à livre transmissão das acções,
bem como um direito de preferência dos outros accionistas e as condições do
respectivo exercício em caso de alienação de acções.
e. A recorrente
é uma pequena-média empresa.
f.
Existe uma estreita ligação familiar e/ou pessoal entre os sócios, na medida em
que:
g. O
capital social da accionista Sociedade 2, SGPS, S.A., é detido pela Senhora
Dr.ª DDD, Senhor Dr. EEE (actualmente, também, membro do Conselho de Administração)
e Senhora Dr.ª FFF, mãe e filhos respectivamente.
h. Os accionistas
AAA, BBB, e CCC são irmãos, sendo que este último já exerceu, também, funções
de membro do conselho de administração.
i. A
estrutura da societária da recorrente é, assim, grosso modo, constituída por
duas famílias: a família GGG e a família HHH.
j. Os
próprios progenitores das referidas famílias, a Senhora Dr.ª DDD e o Senhor Dr.
III, já exerceram (e exercem) cargos em órgãos sociais.
k. Os
restantes membros das famílias têm, de igual modo, ao longo dos anos vindo a
exercer distintos cargos nos diversos órgãos sociais.
39.
Assim é a recorrente, indúvia e inegavelmente, uma sociedade anónima fechada e
de cunho marcadamente personalista ou de configuração personalística.
40.
Ora, assumindo a pessoa do accionista um maior protagonismo na vida social,
facilmente se concebe o potencial relevo excludente de factos relativos à sua
situação/pessoa ou comportamentos e, assim, tornar-se perfeitamente justificada
e adequada a aplicação analógica do artigo 242.º do CSC.
41. Na
medida em que, não é a presente situação axiologicamente distinta de outras
situações próprias de sociedades por quotas.
42. E,
assim, é efectiva e perfeitamente justificada e adequada a aplicação, por
analogia, do artigo 242.º do CSC à situação sub
judice.
43.
Isto posto, estabelece o artigo 242.º do CSC o seguinte: «1 – Pode ser excluído por decisão judicial o sócio que, com o seu
comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade,
lhe tenha causado ou possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes. 2 – A proposição
da acção de exclusão deve ser deliberada pelos sócios, que poderão nomear
representantes especiais para esse efeito. (...)».
44.
Atendendo aos comportamentos perpetuados pelos accionistas recorridos e que se
encontram em apreço nos presentes autos, resulta das conclusões do douto
parecer jurídico do Exmo. Senhor Professor Doutor COUTINHO DE ABREU junto
adiante sob doc. n.º 1 o seguinte:
«(...)
3.ª - Os requeridos adotaram
comportamentos gravemente perturbadores do funcionamento da sociedade,
preenchendo a segunda alternativa da cláusula geral do artigo 242.º, 1 do CSC
quanto às condutas suscetíveis de conduzir à exclusão de sócios, ao impedirem
consabidamente o funcionamento do conselho de administração durante largos
meses, numa altura em que era crucial, para o cumprimento do plano estratégico
anteriormente aprovado e contratualizado com o IAPMEI, que a sociedade
dispusesse de um órgão de administração a funcionar em pleno.
4.ª - Os accionistas excluendos violaram
também com gravidade o seu dever de lealdade, preenchendo a primeira
alternativa da cláusula geral do artigo 242.º, 1 do CSC, alcançando o entrave e
a paralisação da actividade social da Sociedade 1, S.A. em benefício de uma
sociedade concorrente, a Sociedade 3, S.A., da qual eram igualmente accionistas
e na qual reproduziram (com pormenores suscetíveis de integrar actos de
concorrência desleal, como no caso das garrafas de água premium) o modelo de
negócio e o plano estratégico da primeira, da qual desviaram, ainda e numa altura
crucial, um funcionário-chave para o processo produtivo.
5.ª - Estas condutas dos accionistas
excluendos, além de desleais e gravemente perturbadoras do funcionamento da Sociedade
1, S.A., já lhe causaram e são suscetíveis de ainda lhe vir a causar
relevantíssimos prejuízos.
6.ª - Existe, portanto, fundamento pleno
para que a sociedade proceda à respectiva exclusão, pela aplicação analógica do
artigo 242.º do CSC, desencadeando o processo judicial necessário ao exercício
deste seu direito potestativo.».
45.
Ora, sendo perfeita e inegavelmente justificada e adequada a aplicação analógica
do artigo 242.º do CSC ao caso sub judice,
é reconhecido à recorrente o direito potestativo extintivo de excluir os accionistas
recorridos, nos termos preceituados no artigo 242.º do CSC.
46.
Assim, podendo a recorrente colocar à deliberação da assembleia geral a proposição
de uma acção de exclusão de accionistas como pode, nos termos do art.º 242.º,
n.º 2 do CSC, por maioria de razão também pode requerer preliminarmente a
suspensão da qualidade de accionista dos mesmos, como medida provisória para
acautelar e proteger o seu fim/interesse social, que se encontra em perigo,
como requereu nos presentes autos.
Nestes
termos e no mais que venha a ser suprido por V. Exas. deve ser dado provimento
ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente,
determinando-se o prosseguimento do procedimento cautelar, com a necessária
marcação e realização da audiência final.
Caso
assim não se entenda:
Deverá
ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, e,
como corolário, deverá a mesma ser substituída por outra que julgue procedente,
por provada, a providência cautelar requerida, sendo, assim, decretada a
suspensão da qualidade de accionista dos três recorridos.
Mais
se requer, nos termos e para efeitos do artigo 651.º do Código de Processo Civil,
a junção aos autos dos pareceres jurídicos dos Exmos. Senhores Doutores
COUTINHO DE ABREU e JOSÉ FERREIRA GOMES, adiante juntos sob doc. n.º 1 e doc.
n.º 2, respectivamente.
Os
recorridos apresentaram contra-alegações, com as seguintes conclusões:
1. O
artigo 590.º do CPC não impõe qualquer limitação quanto ao momento processual
de prolação de despacho liminar, razão pela qual, não existe qualquer
impedimento que o tribunal a quo,
após ouvir as posições de ambas as partes, indefira liminarmente a petição
inicial.
2.
Subsidiariamente, ainda que se considerasse que não era possível a prolação de
despacho liminar, o que por mero dever de patrocínio se concebe, deveria a
decisão proferida ser analisada sob o prisma da decisão de mérito ao abrigo do
artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC.
3. A
inexistência de direito de exclusão de acionistas foi uma decisão intencional
do legislador, mantida ao longo de décadas, apesar de desde os anos 60 se ter
levantado uma discussão doutrinária quanto à sua aplicação.
4.
Assim, uma vez que não existe lacuna quanto ao direito de exclusão de
accionistas, mas sim um silêncio eloquente da lei, sempre se dirá que não pode
ser aplicado analogicamente o artigo 242.º do CSC.
5. Não
está em causa a inexistência de solução legal quanto à permanência na sociedade
recorrente de accionistas que pratiquem comportamentos desleais, uma vez que
tal situação tem solução legal e contratual através da amortização de ações,
não sendo necessário o recurso à analogia para solucionar o litígio sub judice.
6. A
recorrente é sociedade anónima, tipo societário que foi escolhido pelos
accionistas da recorrente, de forma específica e expressa, colhendo os
benefícios decorrentes duma sociedade de capitais ao invés duma sociedade de
pessoas.
7. Os
accionistas da recorrente previram expressamente a possibilidade de
comportamentos desleais dos accionistas e escolheram no pacto social que tal
situação fosse regulada pela amortização de accionistas e não pela exclusão de
accionistas.
8. A
escolha (legislativa e dos accionistas) de afastar o intuitus personae da essência da sociedade anónima (e quanto à
recorrente) encontra-se inclusive constitucionalmente consagrada e protegida
pelo princípio da livre iniciativa económica plasmado no artigo 61.º da
Constituição da República Portuguesa, reforçado pelo disposto nos artigos 17.º
e 18.º da Constituição da República Portuguesa.
9. Nas
sociedades anónimas não pode ser deliberado em assembleia, ou decidido em acção
judicial, a exclusão de accionista da sociedade, muito menos quando os
estatutos da sociedade não preveem tal exclusão.
10.
Uma vez que não existe o direito a exclusão de acionistas, consequentemente,
não existe o direito a suspensão de acionistas.
11.
Subsidiariamente, a existir um qualquer direito de suspensão de accionistas,
sempre o mesmo estaria dependente de deliberação prévia dos accionistas, o que
não ocorreu, razão pela qual o direito invocado pela recorrente não existe na
sua esfera jurídica.
Destarte,
ressalvado o devido respeito por opinião contrária, sempre se dirá que a douta
sentença não merece qualquer reparo, estando devidamente fundamentada e
aplicando a lei com total acerto.
Como
tal, devem ser julgadas totalmente improcedentes todas as conclusões do recurso
de apelação.
O
recurso foi admitido.
*
As
questões a resolver são as seguintes:
-
Enquadramento jurídico-processual da decisão recorrida;
-
Admissibilidade da exclusão de accionistas de uma sociedade anónima.
*
Enquadramento
jurídico-processual da decisão recorrida:
O
tribunal a quo denominou a decisão
recorrida como «liminar». O seu
dispositivo é o seguinte: «indefere-se
liminarmente o procedimento cautelar requerido».
Acerca
desta questão, a recorrente sustenta, em síntese, o seguinte:
-
Atento o momento processual em que foi proferida, a decisão recorrida não pode
ser considerada liminar;
-
Consequentemente:
- O
tribunal a quo não podia julgar
improcedente o procedimento cautelar nesse momento processual, antes devendo
ter procedido à marcação da audiência final para produção da prova e posterior
prolação da decisão final;
- A
decisão recorrida deverá ser revogada, ordenando-se a baixa dos autos ao
tribunal a quo para que, neste,
prossigam os seus termos, com a realização da audiência final.
A
recorrente tem razão num ponto: a decisão recorrida não pode ser qualificada,
jurídico-processualmente, como liminar. O despacho liminar foi aquele que
ordenou a citação dos requeridos, tendo sido proferido em 02.07.2018. Uma
decisão proferida posteriormente, mais precisamente depois de os requeridos
terem apresentado a sua oposição, de forma alguma pode ser considerada liminar.
Conclui-se, assim, que o tribunal a quo
não qualificou correctamente a decisão recorrida ao indeferir «liminarmente» a pretensão da
recorrente.
Daí
não resulta, todavia, a consequência que a recorrente pretende. Há que
considerar o disposto no artigo 367.º, n.º 1, do CPC. Esta norma estabelece
que, findo o prazo da oposição, quando o requerido haja sido ouvido, se
procede, quando necessário, à produção das provas requeridas ou oficiosamente
determinadas pelo juiz. Quando necessário, sublinhamos. Se entender que o
processo já contém todos os elementos necessários para a prolação de sentença,
o tribunal deverá proferi-la imediatamente, nos termos do artigo 368.º, n.ºs 1
e 2, do CPC, decretando ou recusando a providência cautelar solicitada. Nessas
circunstâncias, a realização de uma audiência final para a produção de prova
traduzir-se-ia num acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC.
Sendo
assim, a decisão recorrida – que constitui uma sentença, nos termos do artigo
152.º, n.º 2, do CPC – encontra-se jurídico-processualmente enquadrada. O
tribunal a quo podia e devia
proferi-la no momento processual em que o fez, no pressuposto, que considerou
verificar-se, de o processo já conter todos os elementos para o efeito
necessários. Se esse pressuposto se verificava, é questão diversa, que
analisaremos em seguida.
Seguro
é que, por si só, a incorrecta qualificação, pelo tribunal a quo, da decisão recorrida como liminar, não a inquina. Aquele
tribunal acabou por conhecer do mérito da causa, recusando a providência
cautelar solicitada pela recorrente, num momento processual em que podia
fazê-lo, e é isso que releva.
Admissibilidade
da exclusão de accionistas de uma sociedade anónima:
O
tribunal a quo julgou o procedimento
improcedente por ter considerado inadmissível a exclusão de accionistas de uma
sociedade anónima, o que, logicamente, determina a ausência de fundamento para
a suspensão da qualidade de accionista dos requeridos. Sendo este o entendimento
do tribunal a quo, justifica-se que
tenha proferido a sentença sem necessidade de realizar a audiência final. De
acordo com tal entendimento, a inviabilidade da pretensão da recorrente era, já
nesse momento, evidente. Já o era, aliás, no momento da prolação do despacho
liminar. Daí, provavelmente, o tribunal a
quo ter qualificado incorrectamente a decisão recorrida como liminar. Não
tendo o tribunal a quo indeferido
liminarmente o requerimento inicial, não estava, porém, impedido de recusar a
providência cautelar solicitada mais tarde, quando chegasse o momento
processual previsto no artigo 367.º, n.º 1, do CPC. A inutilidade do processado
posterior ao despacho liminar – despacho este que, à luz do entendimento do
tribunal a quo sobre a questão de
fundo, devia ter sido de indeferimento do requerimento inicial[1]
– não obriga à prática de mais actos inúteis, como seria a realização de uma
audiência final para produção de prova. O artigo 367.º, n.º 1, do CPC, é claro
a esse respeito.
Importa
averiguar é se o entendimento com base no qual o tribunal a quo recusou a providência cautelar solicitada pela recorrente é
correcto. Ou seja, se é legalmente admissível a exclusão de accionistas de uma
sociedade anónima. É esta a questão fundamental do presente recurso.
A
recorrente sustenta que a exclusão de accionistas de uma sociedade anónima é
admissível por via da aplicação, por analogia, do regime estabelecido no artigo
242.º do Código das Sociedades Comerciais (diploma ao qual pertencem todas as
normas legais doravante referenciadas), que regula a exclusão de sócios das
sociedades por quotas. O n.º 1 deste artigo permite a exclusão, por decisão
judicial, do sócio que, com o seu comportamento
desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade, lhe tenha
causado ou possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes.
Para justificar tal aplicação, a recorrente argumenta
que o regime do artigo 242.º é compatível com o tipo legal da sociedade anónima
porquanto, na prática, inúmeras sociedades constituídas sob esse tipo escapam
ao arquétipo da sociedade anónima oitocentista, tendo, em vez disso, um número
reduzido de accionistas, por vezes ligados entre si por laços familiares,
sendo, portanto, sociedades fechadas e com um cunho
marcadamente personalista. Nessas circunstâncias, continua a recorrente,
citando um parecer que juntou aos autos, assume maior protagonismo a
pessoa do sócio, sendo, assim, facilmente concebível o potencial relevo
excludente de factos relativos à situação ou ao comportamento desse mesmo
sócio, tornando-se perfeitamente justificada a aplicação, por analogia, do
artigo 242.º.
A
recorrente considera que ela própria se encontra nas circunstâncias descritas,
invocando o reduzido número de accionistas e o facto de os recorridos serem
irmãos e ela própria ser uma sociedade cujas acções pertencem a membros de uma
mesma família. Relativamente ao número de accionistas, a recorrente afirma, na
conclusão 26, que são apenas dois, mas trata-se de mera reprodução de um erro constante
de um outro parecer que juntou aos autos, ao longo do qual se pressupõe,
aparentemente, que aquela tem apenas dois accionistas (cfr. páginas 29, 83, 88,
99 e 100 do referido parecer, identificado naquela conclusão). Na conclusão 38,
a recorrente descreve correctamente a sua estrutura accionista, nos seguintes
termos: o capital social encontra-se dividido em 120.000 acções nominativas; a
sociedade “Sociedade 2, SGPS, S.A.” é titular de 60.000 acções; cada um dos
recorridos é titular de 20.000 acções.
Estamos,
portanto, perante uma sociedade anónima com apenas quatro accionistas. Longe,
portanto, do acima aludido arquétipo de sociedade anónima – que, apesar de
tudo, subsiste, com inúmeras aplicações práticas –, cujas acções se encontram
dispersas por um largo número de pessoas que não passam de meros investidores,
que normalmente não se conhecem entre si, nem mantêm qualquer contacto com a
administração da sociedade.
Verifica-se,
contudo, uma particularidade relativamente à recorrente. Um dos seus quatro
accionistas é uma sociedade anónima, mais precisamente uma sociedade gestora de
participações sociais. Apesar de os titulares das acções desta última
pertencerem à mesma família, accionista da recorrente é a sociedade, o que, a
menos que se desconsiderasse, sem justificação, a personalidade jurídica desta,
introduz um factor de perturbação na descrição que a recorrente faz de si própria.
Na realidade, as acções que constituem o capital social da recorrente encontram-se
repartidas por dois blocos de accionistas (o que é, obviamente, diferente de
dois sócios), um constituído por três pessoas singulares ligadas entre si por
laços familiares e o outro por uma sociedade gestora de participações sociais, detendo
cada um desses blocos 50% das referidas acções. Ficamos, assim, algures entre
os extremos da sociedade anónima fechada e com um cunho marcadamente
personalista e da sociedade anónima com o capital disperso por inúmeros
accionistas com pouca ou nenhuma ligação à actividade daquela.
Porém,
a questão que acabámos de analisar acaba por ser irrelevante para a decisão do
recurso. Apenas demonstra, como geralmente acontece com as hipóteses
intermédias, a dificuldade da aplicação prática de soluções que parecem plausíveis
em hipóteses extremas e a incerteza na aplicação do Direito que daí resulta, o
que é particularmente nocivo no domínio do Direito das Sociedades Comerciais,
atentos os interesses em jogo. E é irrelevante porque, desde já adiantamos, em
caso algum o regime constante do artigo 242.º, estabelecido para as sociedades
por quotas, poderá ser aplicado, nomeadamente por analogia, a sociedades
anónimas. Mais, verifica-se uma razão particular para excluir tal aplicação no
caso dos autos. Passamos a justificar estas duas afirmações.
Vigora,
no Direito das Sociedades Comerciais, o princípio da tipicidade[2].
Este princípio encontra-se consagrado logo no artigo 1.º do CSC, cujos n.ºs 2 e
3 estabelecem, respectivamente, que são sociedades comerciais aquelas que
tenham por objecto a prática de actos de comércio e adoptem o tipo de sociedade
em nome colectivo, de sociedade por quotas, de sociedade anónima, de sociedade
em comandita simples ou de sociedade em comandita por acções e que as
sociedades que tenham por objecto a prática de actos de comércio devem adoptar
um dos tipos referidos no número anterior. A margem de liberdade de estipulação
das partes é delimitada pelo referido princípio, não sendo, por exemplo,
admissível a criação de sociedades mistas no sentido de os seus estatutos
conterem elementos que a lei estabeleça como privativos de tipos de sociedade
comercial diversos[3].
Daqui
resulta uma evidente limitação à aplicação, por analogia, de um regime jurídico
que a lei estabeleça para determinado tipo de sociedade a uma sociedade de tipo
diverso[4].
Ao optarem por determinado tipo quando constituem uma sociedade comercial, as
partes deverão ficar cientes, para o bem e para o mal, de que, por um lado, é
aplicável o regime legal privativo desse tipo e, por outro, de que não são
aplicáveis regimes legais privativos de outros tipos. Para o bem no sentido de
que isso lhes proporciona segurança sobre o regime jurídico aplicável, não
correndo o risco de serem surpreendidas, por exemplo, por uma exclusão da
sociedade ou uma responsabilização por dívidas desta sem base legal
consistente. Para o mal no sentido de que a defesa dos seus interesses no seio
da sociedade deverá exercer-se em conformidade com o referido regime jurídico,
sem possibilidade de recurso aos regimes privativos de outros tipos sociais.
A
questão da aplicabilidade às sociedades anónimas, por analogia, do artigo
242.º, não pode deixar de ser equacionada tendo como pano de fundo o princípio
da tipicidade das sociedades comerciais. Os artigos 241.º e 242.º permitem a
exclusão de sócios de sociedades por quotas, estabelecendo o respectivo regime
jurídico. São complementados pelos artigos 246.º, n.º 1, al. c) e 251.º, n.º 1,
al. d). Também o artigo 186.º permite a exclusão de sócios de sociedades em
nome colectivo. Porém, o CSC não prevê a possibilidade de exclusão de
accionistas de sociedades anónimas. Em vão procuraremos, no regime deste tipo
societário, norma paralela às anteriormente referidas, estabelecidas para as
sociedades por quotas e em nome colectivo.
Esta
omissão legislativa da possibilidade de exclusão de accionistas de sociedades
anónimas, qualquer que seja a concreta configuração ou o concreto subtipo destas[5],
não pode ser considerada uma lacuna. Em vez disso, tal omissão inculca que o
legislador pretendeu excluir a admissibilidade daquela exclusão. Esta questão é
debatida na doutrina desde os anos 60 do século passado, pelo que não podia
deixar de ser conhecida pelo legislador, quer em 1986, ano em que o CSC foi
publicado, quer no período desde então decorrido, ao longo do qual sofreu
dezenas de alterações, sendo a mais recente a introduzida pela Lei n.º 9/2022,
de 11.01. Se pretendesse consagrar a admissibilidade de exclusão de accionistas
de sociedades anónimas, ao menos quando estas assumissem a configuração que a
recorrente para si reclama, certamente o teria feito. Oportunidades não lhe
faltaram.
Mantendo-se
a ausência de previsão da possibilidade de exclusão de accionistas de
sociedades anónimas, a única conclusão a retirar é a de que a mesma é
intencional, não se verificando qualquer lacuna. Não havendo lacuna, inexiste
espaço para a aplicação do artigo 242.º por analogia, como a recorrente
pretende. Os accionistas de uma sociedade anónima não podem ser excluídos desta
excepto através do mecanismo da amortização de acções com redução do capital
social, nos termos do artigo 347.º, este sim consagrado no regime privativo daquele
tipo societário[6].
Afirmámos
acima, não só que em caso algum o regime constante do artigo 242.º,
estabelecido para as sociedades por quotas, poderá ser aplicado, nomeadamente
por analogia, a sociedades anónimas, mas também que se verifica uma razão
particular para excluir tal aplicação no caso dos autos. Passamos a justificar
esta segunda afirmação.
O
artigo 9.º, n.º 2, dos estatutos da recorrente, estabelece que esta deverá
amortizar acções, sem o consentimento dos accionistas e com a correspondente
redução do capital social, nomeadamente, quando o titular ou possuidor das
acções viole os seus deveres e obrigações legais ou estatutários para com a
sociedade e/ou para com os restantes accionistas e/ou pelo seu comportamento
desleal perturbe o funcionamento da sociedade, implicando prejuízos em qualquer
área inerente à actividade da empresa [alínea e)] e quando qualquer accionista
utilizar as informações obtidas, no exercício do seu direito à informação ou no
exercício das suas funções na sociedade ou sociedades participadas, de modo a
causar prejuízo a esta ou a qualquer accionista [alínea f)]. Recordemos, por
outro lado, a redacção do n.º 1 artigo 242.º: Pode ser
excluído por decisão judicial o sócio que, com o seu comportamento desleal ou
gravemente perturbador do funcionamento da sociedade, lhe tenha causado ou
possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes.
Facilmente se constata que o conteúdo da parte final da alínea e)
do artigo 9.º dos estatutos da recorrente é semelhante ao do n.º 1 do artigo
242.º. O mesmo é dizer que os factos que justificariam a exclusão dos
recorridos por via da aplicação desta norma legal por analogia também constituiriam,
a terem efectivamente ocorrido, fundamento para a recorrente amortizar as
acções dos recorridos. Sendo assim, independentemente de tudo quanto acima
afirmámos acerca da inaplicabilidade, em geral, do regime do artigo 242.º às
sociedades anónimas, impõe-se a conclusão de que não nos encontramos perante um
caso omisso, para cuja regulação seja necessária a aplicação de uma norma legal
por analogia. Os próprios estatutos da recorrente proporcionam uma via para a
solução do problema, estatuindo que essa via é a amortização do(s)
accionista(s) prevaricador(es). Uma duplicação da tutela dos interesses em jogo
mediante a aplicação do artigo 242.º por analogia seria, além de juridicamente
incorrecta (como anteriormente procurámos demonstrar), inútil. Os próprios
estatutos afastam a solução da exclusão nos termos daquela norma legal.
Inexistindo a possibilidade de exclusão dos recorridos da
sociedade recorrente por via da aplicação do artigo 242.º por analogia,
logicamente fica indemonstrada a probabilidade séria de existência do direito
de suspender a qualidade de accionista daqueles, invocado pela recorrente como
fundamento do presente procedimento cautelar. Logo, o tribunal a quo decidiu acertadamente ao não
decretar tal suspensão, devendo a sentença recorrida ser confirmada.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas
pela recorrente.
Notifique.
*
Évora, 27.10.2022
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.º
adjunto)
(2.ª adjunta)
[1] A análise a que vimos procedendo abstrai,
como não pode deixar de ser, da circunstância, que constatámos, de o despacho
liminar e a decisão recorrida terem sido proferidos por juízes diferentes.
[2] A. FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial, vol. II,
Sociedades Comerciais, Doutrina Geral, Universidade de Coimbra, 1968,
páginas 29 e 37; JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito
Comercial, vol. IV – Sociedades Comerciais, Lisboa, 1993, página 39;
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito das
Sociedades, I, 4.ª edição revista a actualizada, páginas 258 a 261; JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, volume II, 4.ª edição, páginas 51-52 e 72-75;
PAULO OLAVO CUNHA, Direito das
Sociedades Comerciais, 7.ª edição, páginas 62 e 114.
[3] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Obra
citada, páginas 39 e 40; JORGE MANUEL COUTINHO DE
ABREU, Obra citada, páginas 72-73; PAULO
OLAVO CUNHA, Obra citada, páginas
61-62 e 114.
[4] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Obra citada, página 258.
[5] Sobre as configurações e subtipos que
as sociedades anónimas podem assumir, leia-se PAULO OLAVO CUNHA, Obra citada, páginas 66-67 e 99-102.
[6] Leia-se, neste sentido, com
argumentação consistente, PAULO OLAVO CUNHA, Obra citada, páginas 543-544.