quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 27.10.2022

Processo n.º 878/18.1T8OLH.E1

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Sumário:

1 – O não decretamento da providência cautelar solicitada mediante decisão proferida depois de os requeridos terem apresentado a sua oposição não pode ser qualificado como um indeferimento liminar do requerimento inicial.

2 – Apesar da sua incorrecta qualificação, pelo tribunal, como indeferimento liminar, a decisão referida em 1 era admissível, sem a prévia realização de audiência de produção de prova caso esta se mostrasse desnecessária, nos termos do artigo 367.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

3 – Os accionistas de uma sociedade anónima não podem ser excluídos desta por via da aplicação do artigo 242.º do Código das Sociedades Comerciais por analogia.

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Sociedade 1, S.A., instaurou procedimento cautelar comum contra AAA, BBB e CCC, pedindo que seja decretada a suspensão da qualidade de accionista destes últimos. Como fundamento, a requerente alegou factos, alegadamente praticados pelos requeridos, que, no seu entendimento, constituem fundamento de exclusão – a qual constitui a finalidade da acção principal – dos mesmos da sociedade por via da aplicação analógica do artigo 242.º do Código das Sociedades Comerciais ou, se assim se não entender, da aplicação subsidiária do artigo 1003.º, al. a), do Código Civil.

Foi dado o contraditório aos requeridos, os quais, no seu exercício, sustentaram, nomeadamente, que não é legalmente admissível a exclusão de accionistas de uma sociedade anónima e, ainda que assim se não entendesse, não praticaram qualquer facto que justificasse tal exclusão. Daí, segundo os requeridos, a inexistência de fundamento para o decretamento da providência cautelar solicitada.

Após algumas vicissitudes processuais sem relevância para a decisão do presente recurso, o tribunal a quo indeferiu “liminarmente” a providência cautelar requerida.

A requerente interpôs recurso de apelação desta decisão, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida nos autos a 17.06.2022 que, nos termos e para efeitos do estabelecido nos artigos 362.º e 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indeferiu liminarmente o procedimento cautelar requerido.

2. Da douta sentença proferida consta o seguinte: «Assim sendo, mostrando-se o pedido manifestamente improcedente determina o artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que tal vício conduz ao indeferimento liminar do requerimento inicial. Em face do exposto, de harmonia com o disposto no artigo 362.º e 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indefere-se liminarmente o procedimento cautelar requerido.».

3. Ora, a recorrente não pode conformar-se com a sentença proferida, designadamente com o indeferimento liminar do procedimento cautelar, na medida em que nesta fase processual já se encontra ultrapassada a fase de prolação do despacho liminar.

4. Na verdade, a requerente peticionou que a providência cautelar fosse decretada sem a audiência prévia dos requeridos/recorridos.

5. Acontece que, não obstante, a 02.07.2018, foi proferido despacho liminar através do qual o tribunal recorrido determinou a citação daqueles.

6. A presente sentença foi, assim, proferida já após a efectiva e regular citação dos requeridos e da apresentação, pelos mesmos, de oposição.

7. Ora, o despacho de indeferimento liminar apenas e só pode ser proferido aquando da análise liminar do processo pelo juiz titular do mesmo, após a entrada em juízo do requerido de início de processo, nos termos preceituados no artigo 590.º, n.º 1 do CPC, em conjugação com o artigo 226.º, n.º 4, alínea b), do mesmo diploma.

8. Pelo que, o tribunal recorrido ao indeferir liminarmente o procedimento cautelar no momento em que indeferiu, isto é, após a regular e efectiva citação dos requeridos e a apresentação de oposição por estes, violou, de forma manifesta e grosseira, as normas processuais vigentes.

9. Assim, salvo o devido respeito, o tribunal a quo deveria sim ter procedido à marcação da audiência final para produção da prova requerida e posterior prolação da decisão, nos termos e para efeitos conjugados do estabelecido nos artigos 152.º, 367.º e 368.º do Código de Processo Civil.

10. Isto posto, encontra-se a sentença recorrida inelutavelmente inquinada, devendo a mesma ser integralmente revogada e, consequentemente, ser ordenada a baixa dos autos ao tribunal de 1.ª instância, determinando-se o prosseguimento do procedimento cautelar, com a necessária marcação e realização da audiência final.

Sem prejuízo do supra exposto e por mera cautela do patrocínio:

11. Sempre se diga que na sentença proferida o tribunal a quo levou a cabo uma errónea interpretação (e consequente aplicação) do direito aplicável ao caso em apreço.

12. O tribunal recorrido entendeu ser inaplicável, por analogia, ao caso em apreço, o artigo 242.º do CSC, relativo ao regime de exclusão de sócios, tanto em razão da não previsão de tal figura relativamente às sociedades anónimas como em razão de não se encontrar preceituado no art.º 384.º, n.º 6, do CSC, a proibição do accionista votar nas deliberações a respeito de uma eventual exclusão sua.

13. Acontece que, não assiste qualquer razão ao tribunal a quo.

14. Isto porque, desde logo, faz assentar a sua decisão, em traços gerais, numa corrente doutrinária manifestamente minoritária, atendendo ao defendido quer no plano nacional quer nos sistemas que, a maioria das vezes, nos servem de referência.

15. Na verdade, o tribunal recorrido transcreve uma tese de mestrado, datada de 2017, para alicerçar a sua decisão.

16. Sendo que, em momento algum, lhe poderá ser dado o relevo e legitimidade como meio de suporte doutrinário e legal que o tribunal a quo procura lhe conferir.

17. Em primeiro lugar porque a própria conclusão vertida na suprarreferida dissertação de mestrado diverge da posição que o douto tribunal recorrido tenta – erradamente – fazer vingar, na medida em que da mesma resulta – e bem – que sempre será de admitir o direito de exclusão de um sócio às sociedades anónimas quando estas revelam um cunho marcadamente personalista – como é o caso da recorrente!

18. Em segundo lugar porque a este propósito, isto é, com entendimento contrário ao sentido decisório da sentença recorrida – suportada na tese de mestrado suprarreferida –, concluiu já o Senhor Professor Doutor COUTINHO DE ABREU no parecer jurídico junto pela recorrente aos autos fls. com a ref.ª n.º 29607114 e o qual, novamente e por facilidade, adiante se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos sob doc. n.º 1, o seguinte:

«1.ª - Sempre que estejamos perante uma sociedade anónima "fechada" e de cunho marcadamente personalista, na qual assume maior protagonismo a pessoa do sócio e onde facilmente se concebe o potencial relevo excludente de factos relativos à sua situação ou comportamento, torna-se perfeitamente justificada a aplicação, por analogia, do artigo 242.º do CSC.

2.ª - Somando as características estruturais (as acções são nominativas, e a sua transmissão encontra-se estatutariamente sujeita a direito de preferência dos outros sócios ou ao consentimento da própria sociedade) à teia de relações familiares e envolvimento na vida societária, fica cabalmente demonstrado que a Sociedade 1, S.A. é uma daquelas sociedades anónimas que, em concreto, evidenciam os traços necessários e suficientes à sua caracterização como sociedade "fechada" e de cunho marcadamente personalista, justificando-se assim a aplicação analógica do artigo 242.º do CSC aos conflitos que venham a eclodir em virtude do comportamento dos seus accionistas.».

19. Sendo que COUTINHO DE ABREU sustentou, ainda, tal entendimento, nos seguintes termos:

«E não custa admitir a aplicação, por analogia, e com as necessárias adaptações, do artigo 242.º (directamente aplicável às sociedades por quotas) – exclusão judicial de accionista que, “com o seu comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade, lhe tenha causado ou possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes.»

20. Pelo que, quando concluiu que «nas sociedades anónimas não pode ser deliberado em assembleia ou decidido em acção judicial, a exclusão de accionista da sociedade, muito menos quando os estatutos da sociedade não preveem tal exclusão e, sendo assim, por maioria de razão inexiste fundamento para o procedimento cautelar em que se pede a suspensão da qualidade de accionista, antecipatória da acção judicial para exclusão de accionista.», a sentença recorrida contraria não só a corrente doutrinária maioritária como a posição maioritária jurisprudencial adoptada entre nós.

21. Nesta senda, em momento algum poderão colher os argumentos que sustentam a decisão, tais como a impraticabilidade da aplicação de exclusão quando as acções são ao portador como a fácil e livre transmissão (e reaquisição) das participações sociais pelos sócios.

22. Em primeiro lugar porque encontra-se eliminada do nosso ordenamento jurídico a figura das acções ao portador, em razão das alterações legislativas introduzidas em 2017, padecendo, assim, tal fundamento de toda e qualquer aplicabilidade útil.

23. Em segundo lugar porque, relativamente às acções nominativas – como as em apreço –, é perfeitamente possível tanto controlar e conhecer qualquer tentativa de reingresso na sociedade do sócio expulso como estipular, no pacto social, quer limitações quanto à transmissão de acções quer um direito de preferência dos outros accionistas e as condições do respectivo exercício, no caso de alienação de acções, nos termos artigo 328.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CSC.

24. Também não deverá ser conferida qualquer legitimidade ao argumento alegado pelo tribunal a quo da incompatibilidade do tipo societário da sociedade anónima (no seu todo) com a aplicação analógica do artigo 242.º do CSC.

25. A respeito cumpre atentar ao defendido pelo Exmo. Senhor Professor Doutor JOSÉ FERREIRA GOMES no parecer jurídico que adiante se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos sob doc. n.º 2, donde se lê o seguinte:

«I. O argumento da objectivação da participação social confunde planos que são distintos entre si. A perspectiva de que os direitos e deveres dos accionistas estão “incorporados” nas acções, enquanto valores imobiliários, traduz uma técnica legislativa destinada a facilitar a transmissão e a legitimação dos seus titulares para o exercício dessas posições jurídicas.

Este plano de participação como objecto de posições jurídicas e de negócios jurídicos não se confunde com aqueloutro da participação como relação jurídica entre o accionista e a sociedade e, eventualmente, entre os diferentes accionistas.».

26. Mais acrescentando JOSÉ FERREIRA GOMES que:

«I. A perspectiva de que a escolha do tipo sociedade na anónima envolve a adesão a uma distribuição de risco pré-determinada que afasta a exclusão do accionista infiel não tem fundamento.

É uma perspetiva formalista, incompatível com uma realização do direito problematizante e sistematicamente ordenada a valores.

(...)

Nos primórdios, o direito das sociedades anónimas não reconhecia o dever de lealdade dos accionistas e, por maioria de razão, não podia reconhecer a exclusão destes por deslealdade.

(...)

Perante uma sociedade com dois sócios, no qual é patente um intuitu personae, a solução do caso não pode ser condicionada pelo disposto no artigo 347.º/3 CSC. Este cede por restrição teleológica, abrindo espaço à aplicação das coordenadas gerais do direito comum. O recurso ao artigo 242.º/1 CSC, por analogia, limita-se à determinação dos exactos termos em que aquelas coordenadas aqui operam.».

Isto posto,

27. A sociedade comercial anónima é o paradigma das sociedades de capitais e, com efeito, assenta principalmente nas contribuições patrimoniais dos sócios, pouco relevando a individualidade dos sócios e a sua participação pessoal na vida social.

28. Por seu turno, o direito de exclusão de sócio da sociedade comercial constitui uma causa de perda da qualidade de sócio, surgindo como um direito potestativo concedido à sociedade de afastar um sócio que impossibilite ou dificulte a prossecução do fim social daquela, com fundamento na lei ou em cláusula estatutária.

29. Sendo que os factos legais e/ou estatutariamente previstos como fundamento da exclusão de um sócio, prendem-se com um dado comportamento ou uma determinada situação pessoal do sócio, que tornou inexigível aos restantes sócios suportarem a permanência daquele na sociedade.

30. Ora, sendo certo que se encontra subjacente ao direito de exclusão de sócio um intuitu personae, numa primeira e superficial interpretação – e talqualmente entendeu o tribunal a quo – seria de concluir que a não previsão de uma igual figura quanto às sociedades anónimas resulta de uma opção intencional do legislador no sentido de afastar toda e qualquer possibilidade de exclusão de accionistas daquelas.

31. Ora, salvo melhor opinião e, sempre, com o respeito que é devido, o tribunal a quo incorre, precisamente, em erro de interpretação e aplicação das normas jurídicas ao entender que não há lugar, no caso sub judice, à aplicação analógica do artigo 242.º do CSC.

32. Isto porque a não estipulação de um regime de exclusão de accionistas quanto às sociedades anónimas é explicado pelo paradigma de sociedade anónima oitocentista.

33. Porquanto, com o intuito de conferir uma especial protecção aos accionistas minoritários, optou-se pela consagração de um regime legal pautado por uma maior inflexibilidade e rigidez.

34. Tendo, nessa senda, sido estabelecido que os casos que imponham ou permitam a amortização (e consequente extinção) das acções têm que constar concreta e expressamente no pacto social – cfr. artigo 347.º, n.º 3, do CSC.

35. Sucede que, atendendo aos circunstancialismos próprios e inerentes à situação sub judice, sempre se terá que concluir que falham, manifesta e grosseiramente, os pressupostos que fundamentam as soluções (rígidas e inflexíveis) então adoptadas, bem como que não se descortina o bem jurídico que a referida rigidez visa acautelar.

36. Conforme referido pelo Exmo. Senhor Professor Doutor COUTINHO DE ABREU, adiante junto sob doc. n.º 1:

«as concretas e singulares sociedades não têm de corresponder ponto por ponto ao paradigma do tipo a que abstratamente se subsumem, porque as alternativas abertas pelas normas legais dispositivas (cfr. o art. 9.º, 3 do CSC) permitem não só a introdução de características personalísticas em sociedades tipicamente capitais, como são as anónimas, mas também a concreta conformação dessas sociedades, não obstante o seu tipo legal, como verdadeiras sociedades de pessoas.».

37. Falamos, assim, do denominado fenómeno de «miscigenação dos tipos societários» ou «matização personalística do cunho capitalístico».

38. Ora, cumpre atentarmos às características formais e estruturais da recorrente, talqualmente estabelecidas, em comum e unânime acordo entre todos os accionistas, no pacto social, nomeadamente:

a. O capital social da requerente é, actualmente, de € 300.000,00 (trezentos mil euros), dividido em 120.000 (cento e vinte mil) acções nominativas, com o valor nominal de € 2,50 (dois euros e cinquenta cêntimos) cada, pelos seguintes accionistas:

- Sociedade 2, SGPS, S.A., titular de 60.000 (sessenta mil) acções nominativas, que corresponde a 50% do capital social de € 300.000,00 da recorrente;

- AAA, aqui recorrida, titular de 20.000 (vinte mil) acções nominativas, que corresponde a 16,66% do capital social de € 300.000,00 da recorrente;

- BBB, aqui recorrida, titular de 20.000 (vinte mil) acções nominativas, que corresponde a 16,66% do capital social de € 300.000,00 da recorrente;

- CCC, aqui recorrido, titular de 20.000 (vinte mil) acções nominativas, que corresponde a 16,66% do capital social de € 300.000,00 da recorrente;

- O capital social da recorrente é, assim, detido por 4 (quatro) distintos accionistas.

b. O capital da recorrente não se encontra aberto ao investimento público.

c. Todas as acções representativas do capital social da recorrente são nominativas, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do pacto social.

d. O artigo 8.º do pacto social estabelece restrições à livre transmissão das acções, bem como um direito de preferência dos outros accionistas e as condições do respectivo exercício em caso de alienação de acções.

e. A recorrente é uma pequena-média empresa.

f. Existe uma estreita ligação familiar e/ou pessoal entre os sócios, na medida em que:

g. O capital social da accionista Sociedade 2, SGPS, S.A., é detido pela Senhora Dr.ª DDD, Senhor Dr. EEE (actualmente, também, membro do Conselho de Administração) e Senhora Dr.ª FFF, mãe e filhos respectivamente.

h. Os accionistas AAA, BBB, e CCC são irmãos, sendo que este último já exerceu, também, funções de membro do conselho de administração.

i. A estrutura da societária da recorrente é, assim, grosso modo, constituída por duas famílias: a família GGG e a família HHH.

j. Os próprios progenitores das referidas famílias, a Senhora Dr.ª DDD e o Senhor Dr. III, já exerceram (e exercem) cargos em órgãos sociais.

k. Os restantes membros das famílias têm, de igual modo, ao longo dos anos vindo a exercer distintos cargos nos diversos órgãos sociais.

39. Assim é a recorrente, indúvia e inegavelmente, uma sociedade anónima fechada e de cunho marcadamente personalista ou de configuração personalística.

40. Ora, assumindo a pessoa do accionista um maior protagonismo na vida social, facilmente se concebe o potencial relevo excludente de factos relativos à sua situação/pessoa ou comportamentos e, assim, tornar-se perfeitamente justificada e adequada a aplicação analógica do artigo 242.º do CSC.

41. Na medida em que, não é a presente situação axiologicamente distinta de outras situações próprias de sociedades por quotas.

42. E, assim, é efectiva e perfeitamente justificada e adequada a aplicação, por analogia, do artigo 242.º do CSC à situação sub judice.

43. Isto posto, estabelece o artigo 242.º do CSC o seguinte: «1 – Pode ser excluído por decisão judicial o sócio que, com o seu comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade, lhe tenha causado ou possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes. 2 – A proposição da acção de exclusão deve ser deliberada pelos sócios, que poderão nomear representantes especiais para esse efeito. (...)».

44. Atendendo aos comportamentos perpetuados pelos accionistas recorridos e que se encontram em apreço nos presentes autos, resulta das conclusões do douto parecer jurídico do Exmo. Senhor Professor Doutor COUTINHO DE ABREU junto adiante sob doc. n.º 1 o seguinte:

«(...)

3.ª - Os requeridos adotaram comportamentos gravemente perturbadores do funcionamento da sociedade, preenchendo a segunda alternativa da cláusula geral do artigo 242.º, 1 do CSC quanto às condutas suscetíveis de conduzir à exclusão de sócios, ao impedirem consabidamente o funcionamento do conselho de administração durante largos meses, numa altura em que era crucial, para o cumprimento do plano estratégico anteriormente aprovado e contratualizado com o IAPMEI, que a sociedade dispusesse de um órgão de administração a funcionar em pleno.

4.ª - Os accionistas excluendos violaram também com gravidade o seu dever de lealdade, preenchendo a primeira alternativa da cláusula geral do artigo 242.º, 1 do CSC, alcançando o entrave e a paralisação da actividade social da Sociedade 1, S.A. em benefício de uma sociedade concorrente, a Sociedade 3, S.A., da qual eram igualmente accionistas e na qual reproduziram (com pormenores suscetíveis de integrar actos de concorrência desleal, como no caso das garrafas de água premium) o modelo de negócio e o plano estratégico da primeira, da qual desviaram, ainda e numa altura crucial, um funcionário-chave para o processo produtivo.

5.ª - Estas condutas dos accionistas excluendos, além de desleais e gravemente perturbadoras do funcionamento da Sociedade 1, S.A., já lhe causaram e são suscetíveis de ainda lhe vir a causar relevantíssimos prejuízos.

6.ª - Existe, portanto, fundamento pleno para que a sociedade proceda à respectiva exclusão, pela aplicação analógica do artigo 242.º do CSC, desencadeando o processo judicial necessário ao exercício deste seu direito potestativo.».

45. Ora, sendo perfeita e inegavelmente justificada e adequada a aplicação analógica do artigo 242.º do CSC ao caso sub judice, é reconhecido à recorrente o direito potestativo extintivo de excluir os accionistas recorridos, nos termos preceituados no artigo 242.º do CSC.

46. Assim, podendo a recorrente colocar à deliberação da assembleia geral a proposição de uma acção de exclusão de accionistas como pode, nos termos do art.º 242.º, n.º 2 do CSC, por maioria de razão também pode requerer preliminarmente a suspensão da qualidade de accionista dos mesmos, como medida provisória para acautelar e proteger o seu fim/interesse social, que se encontra em perigo, como requereu nos presentes autos.

Nestes termos e no mais que venha a ser suprido por V. Exas. deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, determinando-se o prosseguimento do procedimento cautelar, com a necessária marcação e realização da audiência final.

Caso assim não se entenda:

Deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, e, como corolário, deverá a mesma ser substituída por outra que julgue procedente, por provada, a providência cautelar requerida, sendo, assim, decretada a suspensão da qualidade de accionista dos três recorridos.

Mais se requer, nos termos e para efeitos do artigo 651.º do Código de Processo Civil, a junção aos autos dos pareceres jurídicos dos Exmos. Senhores Doutores COUTINHO DE ABREU e JOSÉ FERREIRA GOMES, adiante juntos sob doc. n.º 1 e doc. n.º 2, respectivamente.

Os recorridos apresentaram contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1. O artigo 590.º do CPC não impõe qualquer limitação quanto ao momento processual de prolação de despacho liminar, razão pela qual, não existe qualquer impedimento que o tribunal a quo, após ouvir as posições de ambas as partes, indefira liminarmente a petição inicial.

2. Subsidiariamente, ainda que se considerasse que não era possível a prolação de despacho liminar, o que por mero dever de patrocínio se concebe, deveria a decisão proferida ser analisada sob o prisma da decisão de mérito ao abrigo do artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC.

3. A inexistência de direito de exclusão de acionistas foi uma decisão intencional do legislador, mantida ao longo de décadas, apesar de desde os anos 60 se ter levantado uma discussão doutrinária quanto à sua aplicação.

4. Assim, uma vez que não existe lacuna quanto ao direito de exclusão de accionistas, mas sim um silêncio eloquente da lei, sempre se dirá que não pode ser aplicado analogicamente o artigo 242.º do CSC.

5. Não está em causa a inexistência de solução legal quanto à permanência na sociedade recorrente de accionistas que pratiquem comportamentos desleais, uma vez que tal situação tem solução legal e contratual através da amortização de ações, não sendo necessário o recurso à analogia para solucionar o litígio sub judice.

6. A recorrente é sociedade anónima, tipo societário que foi escolhido pelos accionistas da recorrente, de forma específica e expressa, colhendo os benefícios decorrentes duma sociedade de capitais ao invés duma sociedade de pessoas.

7. Os accionistas da recorrente previram expressamente a possibilidade de comportamentos desleais dos accionistas e escolheram no pacto social que tal situação fosse regulada pela amortização de accionistas e não pela exclusão de accionistas.

8. A escolha (legislativa e dos accionistas) de afastar o intuitus personae da essência da sociedade anónima (e quanto à recorrente) encontra-se inclusive constitucionalmente consagrada e protegida pelo princípio da livre iniciativa económica plasmado no artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa, reforçado pelo disposto nos artigos 17.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa.

9. Nas sociedades anónimas não pode ser deliberado em assembleia, ou decidido em acção judicial, a exclusão de accionista da sociedade, muito menos quando os estatutos da sociedade não preveem tal exclusão.

10. Uma vez que não existe o direito a exclusão de acionistas, consequentemente, não existe o direito a suspensão de acionistas.

11. Subsidiariamente, a existir um qualquer direito de suspensão de accionistas, sempre o mesmo estaria dependente de deliberação prévia dos accionistas, o que não ocorreu, razão pela qual o direito invocado pela recorrente não existe na sua esfera jurídica.

Destarte, ressalvado o devido respeito por opinião contrária, sempre se dirá que a douta sentença não merece qualquer reparo, estando devidamente fundamentada e aplicando a lei com total acerto.

Como tal, devem ser julgadas totalmente improcedentes todas as conclusões do recurso de apelação.

O recurso foi admitido.

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As questões a resolver são as seguintes:

- Enquadramento jurídico-processual da decisão recorrida;

- Admissibilidade da exclusão de accionistas de uma sociedade anónima.

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Enquadramento jurídico-processual da decisão recorrida:

O tribunal a quo denominou a decisão recorrida como «liminar». O seu dispositivo é o seguinte: «indefere-se liminarmente o procedimento cautelar requerido».

Acerca desta questão, a recorrente sustenta, em síntese, o seguinte:

- Atento o momento processual em que foi proferida, a decisão recorrida não pode ser considerada liminar;

- Consequentemente:

- O tribunal a quo não podia julgar improcedente o procedimento cautelar nesse momento processual, antes devendo ter procedido à marcação da audiência final para produção da prova e posterior prolação da decisão final;

- A decisão recorrida deverá ser revogada, ordenando-se a baixa dos autos ao tribunal a quo para que, neste, prossigam os seus termos, com a realização da audiência final.

A recorrente tem razão num ponto: a decisão recorrida não pode ser qualificada, jurídico-processualmente, como liminar. O despacho liminar foi aquele que ordenou a citação dos requeridos, tendo sido proferido em 02.07.2018. Uma decisão proferida posteriormente, mais precisamente depois de os requeridos terem apresentado a sua oposição, de forma alguma pode ser considerada liminar. Conclui-se, assim, que o tribunal a quo não qualificou correctamente a decisão recorrida ao indeferir «liminarmente» a pretensão da recorrente.

Daí não resulta, todavia, a consequência que a recorrente pretende. Há que considerar o disposto no artigo 367.º, n.º 1, do CPC. Esta norma estabelece que, findo o prazo da oposição, quando o requerido haja sido ouvido, se procede, quando necessário, à produção das provas requeridas ou oficiosamente determinadas pelo juiz. Quando necessário, sublinhamos. Se entender que o processo já contém todos os elementos necessários para a prolação de sentença, o tribunal deverá proferi-la imediatamente, nos termos do artigo 368.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, decretando ou recusando a providência cautelar solicitada. Nessas circunstâncias, a realização de uma audiência final para a produção de prova traduzir-se-ia num acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC.

Sendo assim, a decisão recorrida – que constitui uma sentença, nos termos do artigo 152.º, n.º 2, do CPC – encontra-se jurídico-processualmente enquadrada. O tribunal a quo podia e devia proferi-la no momento processual em que o fez, no pressuposto, que considerou verificar-se, de o processo já conter todos os elementos para o efeito necessários. Se esse pressuposto se verificava, é questão diversa, que analisaremos em seguida.

Seguro é que, por si só, a incorrecta qualificação, pelo tribunal a quo, da decisão recorrida como liminar, não a inquina. Aquele tribunal acabou por conhecer do mérito da causa, recusando a providência cautelar solicitada pela recorrente, num momento processual em que podia fazê-lo, e é isso que releva.

Admissibilidade da exclusão de accionistas de uma sociedade anónima:

O tribunal a quo julgou o procedimento improcedente por ter considerado inadmissível a exclusão de accionistas de uma sociedade anónima, o que, logicamente, determina a ausência de fundamento para a suspensão da qualidade de accionista dos requeridos. Sendo este o entendimento do tribunal a quo, justifica-se que tenha proferido a sentença sem necessidade de realizar a audiência final. De acordo com tal entendimento, a inviabilidade da pretensão da recorrente era, já nesse momento, evidente. Já o era, aliás, no momento da prolação do despacho liminar. Daí, provavelmente, o tribunal a quo ter qualificado incorrectamente a decisão recorrida como liminar. Não tendo o tribunal a quo indeferido liminarmente o requerimento inicial, não estava, porém, impedido de recusar a providência cautelar solicitada mais tarde, quando chegasse o momento processual previsto no artigo 367.º, n.º 1, do CPC. A inutilidade do processado posterior ao despacho liminar – despacho este que, à luz do entendimento do tribunal a quo sobre a questão de fundo, devia ter sido de indeferimento do requerimento inicial[1] – não obriga à prática de mais actos inúteis, como seria a realização de uma audiência final para produção de prova. O artigo 367.º, n.º 1, do CPC, é claro a esse respeito.

Importa averiguar é se o entendimento com base no qual o tribunal a quo recusou a providência cautelar solicitada pela recorrente é correcto. Ou seja, se é legalmente admissível a exclusão de accionistas de uma sociedade anónima. É esta a questão fundamental do presente recurso.

A recorrente sustenta que a exclusão de accionistas de uma sociedade anónima é admissível por via da aplicação, por analogia, do regime estabelecido no artigo 242.º do Código das Sociedades Comerciais (diploma ao qual pertencem todas as normas legais doravante referenciadas), que regula a exclusão de sócios das sociedades por quotas. O n.º 1 deste artigo permite a exclusão, por decisão judicial, do sócio que, com o seu comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade, lhe tenha causado ou possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes.

Para justificar tal aplicação, a recorrente argumenta que o regime do artigo 242.º é compatível com o tipo legal da sociedade anónima porquanto, na prática, inúmeras sociedades constituídas sob esse tipo escapam ao arquétipo da sociedade anónima oitocentista, tendo, em vez disso, um número reduzido de accionistas, por vezes ligados entre si por laços familiares, sendo, portanto, sociedades fechadas e com um cunho marcadamente personalista. Nessas circunstâncias, continua a recorrente, citando um parecer que juntou aos autos, assume maior protagonismo a pessoa do sócio, sendo, assim, facilmente concebível o potencial relevo excludente de factos relativos à situação ou ao comportamento desse mesmo sócio, tornando-se perfeitamente justificada a aplicação, por analogia, do artigo 242.º.

A recorrente considera que ela própria se encontra nas circunstâncias descritas, invocando o reduzido número de accionistas e o facto de os recorridos serem irmãos e ela própria ser uma sociedade cujas acções pertencem a membros de uma mesma família. Relativamente ao número de accionistas, a recorrente afirma, na conclusão 26, que são apenas dois, mas trata-se de mera reprodução de um erro constante de um outro parecer que juntou aos autos, ao longo do qual se pressupõe, aparentemente, que aquela tem apenas dois accionistas (cfr. páginas 29, 83, 88, 99 e 100 do referido parecer, identificado naquela conclusão). Na conclusão 38, a recorrente descreve correctamente a sua estrutura accionista, nos seguintes termos: o capital social encontra-se dividido em 120.000 acções nominativas; a sociedade “Sociedade 2, SGPS, S.A.” é titular de 60.000 acções; cada um dos recorridos é titular de 20.000 acções.

Estamos, portanto, perante uma sociedade anónima com apenas quatro accionistas. Longe, portanto, do acima aludido arquétipo de sociedade anónima – que, apesar de tudo, subsiste, com inúmeras aplicações práticas –, cujas acções se encontram dispersas por um largo número de pessoas que não passam de meros investidores, que normalmente não se conhecem entre si, nem mantêm qualquer contacto com a administração da sociedade.

Verifica-se, contudo, uma particularidade relativamente à recorrente. Um dos seus quatro accionistas é uma sociedade anónima, mais precisamente uma sociedade gestora de participações sociais. Apesar de os titulares das acções desta última pertencerem à mesma família, accionista da recorrente é a sociedade, o que, a menos que se desconsiderasse, sem justificação, a personalidade jurídica desta, introduz um factor de perturbação na descrição que a recorrente faz de si própria. Na realidade, as acções que constituem o capital social da recorrente encontram-se repartidas por dois blocos de accionistas (o que é, obviamente, diferente de dois sócios), um constituído por três pessoas singulares ligadas entre si por laços familiares e o outro por uma sociedade gestora de participações sociais, detendo cada um desses blocos 50% das referidas acções. Ficamos, assim, algures entre os extremos da sociedade anónima fechada e com um cunho marcadamente personalista e da sociedade anónima com o capital disperso por inúmeros accionistas com pouca ou nenhuma ligação à actividade daquela.

Porém, a questão que acabámos de analisar acaba por ser irrelevante para a decisão do recurso. Apenas demonstra, como geralmente acontece com as hipóteses intermédias, a dificuldade da aplicação prática de soluções que parecem plausíveis em hipóteses extremas e a incerteza na aplicação do Direito que daí resulta, o que é particularmente nocivo no domínio do Direito das Sociedades Comerciais, atentos os interesses em jogo. E é irrelevante porque, desde já adiantamos, em caso algum o regime constante do artigo 242.º, estabelecido para as sociedades por quotas, poderá ser aplicado, nomeadamente por analogia, a sociedades anónimas. Mais, verifica-se uma razão particular para excluir tal aplicação no caso dos autos. Passamos a justificar estas duas afirmações.

Vigora, no Direito das Sociedades Comerciais, o princípio da tipicidade[2]. Este princípio encontra-se consagrado logo no artigo 1.º do CSC, cujos n.ºs 2 e 3 estabelecem, respectivamente, que são sociedades comerciais aquelas que tenham por objecto a prática de actos de comércio e adoptem o tipo de sociedade em nome colectivo, de sociedade por quotas, de sociedade anónima, de sociedade em comandita simples ou de sociedade em comandita por acções e que as sociedades que tenham por objecto a prática de actos de comércio devem adoptar um dos tipos referidos no número anterior. A margem de liberdade de estipulação das partes é delimitada pelo referido princípio, não sendo, por exemplo, admissível a criação de sociedades mistas no sentido de os seus estatutos conterem elementos que a lei estabeleça como privativos de tipos de sociedade comercial diversos[3].

Daqui resulta uma evidente limitação à aplicação, por analogia, de um regime jurídico que a lei estabeleça para determinado tipo de sociedade a uma sociedade de tipo diverso[4]. Ao optarem por determinado tipo quando constituem uma sociedade comercial, as partes deverão ficar cientes, para o bem e para o mal, de que, por um lado, é aplicável o regime legal privativo desse tipo e, por outro, de que não são aplicáveis regimes legais privativos de outros tipos. Para o bem no sentido de que isso lhes proporciona segurança sobre o regime jurídico aplicável, não correndo o risco de serem surpreendidas, por exemplo, por uma exclusão da sociedade ou uma responsabilização por dívidas desta sem base legal consistente. Para o mal no sentido de que a defesa dos seus interesses no seio da sociedade deverá exercer-se em conformidade com o referido regime jurídico, sem possibilidade de recurso aos regimes privativos de outros tipos sociais.

A questão da aplicabilidade às sociedades anónimas, por analogia, do artigo 242.º, não pode deixar de ser equacionada tendo como pano de fundo o princípio da tipicidade das sociedades comerciais. Os artigos 241.º e 242.º permitem a exclusão de sócios de sociedades por quotas, estabelecendo o respectivo regime jurídico. São complementados pelos artigos 246.º, n.º 1, al. c) e 251.º, n.º 1, al. d). Também o artigo 186.º permite a exclusão de sócios de sociedades em nome colectivo. Porém, o CSC não prevê a possibilidade de exclusão de accionistas de sociedades anónimas. Em vão procuraremos, no regime deste tipo societário, norma paralela às anteriormente referidas, estabelecidas para as sociedades por quotas e em nome colectivo.

Esta omissão legislativa da possibilidade de exclusão de accionistas de sociedades anónimas, qualquer que seja a concreta configuração ou o concreto subtipo destas[5], não pode ser considerada uma lacuna. Em vez disso, tal omissão inculca que o legislador pretendeu excluir a admissibilidade daquela exclusão. Esta questão é debatida na doutrina desde os anos 60 do século passado, pelo que não podia deixar de ser conhecida pelo legislador, quer em 1986, ano em que o CSC foi publicado, quer no período desde então decorrido, ao longo do qual sofreu dezenas de alterações, sendo a mais recente a introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11.01. Se pretendesse consagrar a admissibilidade de exclusão de accionistas de sociedades anónimas, ao menos quando estas assumissem a configuração que a recorrente para si reclama, certamente o teria feito. Oportunidades não lhe faltaram.

Mantendo-se a ausência de previsão da possibilidade de exclusão de accionistas de sociedades anónimas, a única conclusão a retirar é a de que a mesma é intencional, não se verificando qualquer lacuna. Não havendo lacuna, inexiste espaço para a aplicação do artigo 242.º por analogia, como a recorrente pretende. Os accionistas de uma sociedade anónima não podem ser excluídos desta excepto através do mecanismo da amortização de acções com redução do capital social, nos termos do artigo 347.º, este sim consagrado no regime privativo daquele tipo societário[6].

Afirmámos acima, não só que em caso algum o regime constante do artigo 242.º, estabelecido para as sociedades por quotas, poderá ser aplicado, nomeadamente por analogia, a sociedades anónimas, mas também que se verifica uma razão particular para excluir tal aplicação no caso dos autos. Passamos a justificar esta segunda afirmação.

O artigo 9.º, n.º 2, dos estatutos da recorrente, estabelece que esta deverá amortizar acções, sem o consentimento dos accionistas e com a correspondente redução do capital social, nomeadamente, quando o titular ou possuidor das acções viole os seus deveres e obrigações legais ou estatutários para com a sociedade e/ou para com os restantes accionistas e/ou pelo seu comportamento desleal perturbe o funcionamento da sociedade, implicando prejuízos em qualquer área inerente à actividade da empresa [alínea e)] e quando qualquer accionista utilizar as informações obtidas, no exercício do seu direito à informação ou no exercício das suas funções na sociedade ou sociedades participadas, de modo a causar prejuízo a esta ou a qualquer accionista [alínea f)]. Recordemos, por outro lado, a redacção do n.º 1 artigo 242.º: Pode ser excluído por decisão judicial o sócio que, com o seu comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade, lhe tenha causado ou possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes.

Facilmente se constata que o conteúdo da parte final da alínea e) do artigo 9.º dos estatutos da recorrente é semelhante ao do n.º 1 do artigo 242.º. O mesmo é dizer que os factos que justificariam a exclusão dos recorridos por via da aplicação desta norma legal por analogia também constituiriam, a terem efectivamente ocorrido, fundamento para a recorrente amortizar as acções dos recorridos. Sendo assim, independentemente de tudo quanto acima afirmámos acerca da inaplicabilidade, em geral, do regime do artigo 242.º às sociedades anónimas, impõe-se a conclusão de que não nos encontramos perante um caso omisso, para cuja regulação seja necessária a aplicação de uma norma legal por analogia. Os próprios estatutos da recorrente proporcionam uma via para a solução do problema, estatuindo que essa via é a amortização do(s) accionista(s) prevaricador(es). Uma duplicação da tutela dos interesses em jogo mediante a aplicação do artigo 242.º por analogia seria, além de juridicamente incorrecta (como anteriormente procurámos demonstrar), inútil. Os próprios estatutos afastam a solução da exclusão nos termos daquela norma legal.

Inexistindo a possibilidade de exclusão dos recorridos da sociedade recorrente por via da aplicação do artigo 242.º por analogia, logicamente fica indemonstrada a probabilidade séria de existência do direito de suspender a qualidade de accionista daqueles, invocado pela recorrente como fundamento do presente procedimento cautelar. Logo, o tribunal a quo decidiu acertadamente ao não decretar tal suspensão, devendo a sentença recorrida ser confirmada.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Notifique.

*

Évora, 27.10.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)

 


[1] A análise a que vimos procedendo abstrai, como não pode deixar de ser, da circunstância, que constatámos, de o despacho liminar e a decisão recorrida terem sido proferidos por juízes diferentes.

[2] A. FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial, vol. II, Sociedades Comerciais, Doutrina Geral, Universidade de Coimbra, 1968, páginas 29 e 37; JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Comercial, vol. IV – Sociedades Comerciais, Lisboa, 1993, página 39; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito das Sociedades, I, 4.ª edição revista a actualizada, páginas 258 a 261; JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, volume II, 4.ª edição, páginas 51-52 e 72-75; PAULO OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais, 7.ª edição, páginas 62 e 114.

[3] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Obra citada, páginas 39 e 40; JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Obra citada, páginas 72-73; PAULO OLAVO CUNHA, Obra citada, páginas 61-62 e 114.

[4] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Obra citada, página 258.

[5] Sobre as configurações e subtipos que as sociedades anónimas podem assumir, leia-se PAULO OLAVO CUNHA, Obra citada, páginas 66-67 e 99-102.

[6] Leia-se, neste sentido, com argumentação consistente, PAULO OLAVO CUNHA, Obra citada, páginas 543-544.


Acórdão da Relação de Évora de 16.01.2025

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